quinta-feira, 17 de julho de 2025

AS BARBAS SEM FIM


   Aquele homem nunca tinha cortado as barbas. Elas cresceram até ao peito, até à barriga, até aos pés, até arrastarem pelo chão.

   Quando se esquecia de pôr o cinto, atava-as à cintura, para não lhe caírem as calças.

   Quando queria varrer a casa, não precisava de vassoura - usava as barbas.

   Quando parava a bicicleta na cidade, deixava-a sempre ficar presa às barbas para ninguém lha roubar.

   Quando precisava de secar roupa, estendia as barbas entre duas estacas, no quintal, e nelas pendurava as camisas, as toalhas, os lençóis...

   Quando a neta o vinha visitar, era certo e sabido que pedia logo:

   - Avozinho, deixa-me saltar à corda com as suas barbas?

   Se levava o cão a passeio, que trela julgam que usava? As barbas, está-se mesmo a ver!


Luísa Ducla Soares



 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

 Zé Espantalho


   Se perguntassem um dia a Zé Espantalho quando começou a dar conta do mundo que o rodeava, nem ele ao certo sabia. 

   Primeiro, começara por ser apenas uma figura ridícula feita com paus de vassoura, vestido com trapos velhos de um guarda-roupa modesto.

   Dançavam-lhe as calças nas pernas, sobrava casaco ao alto, camisa não conhecia e peúgas dispensava.

   Quando muito, com a melhor das vontades, poderia descobrir-se um toque de elegância no chapéu, se este ao menos fosse novo.

   Mas nem por isso!

   Por aquelas abas torcidas já tinham passado alguns invernos, e um buraco ou outro no feltro faziam dele um passador.

   Por fim, para o tornarem mais parecido com o dono da seara, puseram-lhe boca, olhos, orelhas, nariz, bigode - e o requinte de umas luvas mesmo com os dedos furados.

   Ficou o que se podia chamar um guarda bem disfarçado.

   Por essa altura, feito, nascido e crescido, Zé Espantalho começou a puxar pela cabeça e a servir-se de tanta coisa que tinha.

   Com os olhos começou por dar uma espreitadela ao mundo em que vivia. A seara, o monte, as árvores, o Sol, as nuvens, a Lua e as estrelas deixaram-no extasiado. Romântico de tenra idade, apaixonou-se pela Lua, nas noites quentes de verão.

   Com os ouvidos apanhou a chilreada dos pássaros, o canto morno das cigarras e a alvorada dos galos.

   Com o nariz foi cheirando o que da terra subia, e com a boca saudando o vaivém da passarada.

   Como se isso não bastasse, de vez em quando o camponês aparecia para lhe compor a figura e, enquanto lhe dava o jeito, ia falando baixinho:

   - Olá meu pateta alegre! Estás bom ou não queres dizer? Faz-se pela vida, não é? Lá grande guarda não saíste, mas foi o que se arranjou. Ter-te aqui ou não ter nada, dá quase tudo na mesma.

   E dava, lá isso dava!

   Porque fazer de polícia, por mais searas que houvesse, não era a sua vocação.

   Preferia antes cantar, como um poeta cantor, ou exibir piruetas dignas de um palhaço pobre.

   Mas polícia de pardal!... isso, não!


Fernando Bento GomesAventuras do Espantalho Voador