Zé Espantalho
Se perguntassem um dia a Zé Espantalho quando começou a dar conta do mundo que o rodeava, nem ele ao certo sabia.
Primeiro, começara por ser apenas uma figura ridícula feita com paus de vassoura, vestido com trapos velhos de um guarda-roupa modesto.
Dançavam-lhe as calças nas pernas, sobrava casaco ao alto, camisa não conhecia e peúgas dispensava.
Quando muito, com a melhor das vontades, poderia descobrir-se um toque de elegância no chapéu, se este ao menos fosse novo.
Mas nem por isso!
Por aquelas abas torcidas já tinham passado alguns invernos, e um buraco ou outro no feltro faziam dele um passador.
Por fim, para o tornarem mais parecido com o dono da seara, puseram-lhe boca, olhos, orelhas, nariz, bigode - e o requinte de umas luvas mesmo com os dedos furados.
Ficou o que se podia chamar um guarda bem disfarçado.
Por essa altura, feito, nascido e crescido, Zé Espantalho começou a puxar pela cabeça e a servir-se de tanta coisa que tinha.
Com os olhos começou por dar uma espreitadela ao mundo em que vivia. A seara, o monte, as árvores, o Sol, as nuvens, a Lua e as estrelas deixaram-no extasiado. Romântico de tenra idade, apaixonou-se pela Lua, nas noites quentes de verão.
Com os ouvidos apanhou a chilreada dos pássaros, o canto morno das cigarras e a alvorada dos galos.
Com o nariz foi cheirando o que da terra subia, e com a boca saudando o vaivém da passarada.
Como se isso não bastasse, de vez em quando o camponês aparecia para lhe compor a figura e, enquanto lhe dava o jeito, ia falando baixinho:
- Olá meu pateta alegre! Estás bom ou não queres dizer? Faz-se pela vida, não é? Lá grande guarda não saíste, mas foi o que se arranjou. Ter-te aqui ou não ter nada, dá quase tudo na mesma.
E dava, lá isso dava!
Porque fazer de polícia, por mais searas que houvesse, não era a sua vocação.
Preferia antes cantar, como um poeta cantor, ou exibir piruetas dignas de um palhaço pobre.
Mas polícia de pardal!... isso, não!
Fernando Bento Gomes, Aventuras do Espantalho Voador