sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A TROMBA DO ELEFANTE WAN-BO



   Há muito, muito tempo - talvez na época em que o Céu se separou da Terra -, o Mundo estava povoado de monstros fabulosos: dragões alados que cuspiam fogo; lagartos gigantescos; serpentes vorazes com várias cabeças...
   Estas incríveis criaturas aterrorizavam os outros animais da criação. Os herbívoros e carnívoros só conseguiam salvar a vida graças às suas manhas e agilidade. Alguns, como a família de Sanu, o macaco, escapavam a esses monstros porque a imensa floresta tropical tinha esconderijos maravilhosos.
   Não era esse o caso de Wan-Bo, o elefante. O infeliz Wan-Bo tinha dificuldade em se esconder atrás do capim gigante ou dos arbustos, quando um desses monstros o avistava. É certo que as suas poderosas presas obrigavam o inimigo a recuar... Mas, nesse tempo, Wan-Bo não tinha tromba! Não, Wan-Bo não tinha nada pendurado do nariz...
   Ora vamos saber como, um belo dia, obteve essa terrível arma que hoje todos lhe invejam.
   Estava-se na estação seca. Faltava a água. A caça rareava. As criaturas monstruosas chegavam a devorar-se umas às outras. Por uma noite quente, junto da lagoa seca, houve uma luta mortal entre uma gigantesca serpente e um dragão. O fragor do combate atingiu o coração da grande floresta. Durante três dias e três noites, com inaudita violência, afrontaram-se os dois colossos. Ao fim do terceiro dia,  o dragão, cujo corpo era uma enorme boca - ou melhor, uma autêntica caverna! - armada de milhares de dentes, cortou o corpo do adversário em vários pedaços, que devorou avidamente.
   Depois disso, dirigiu-se para a sua gruta, a fim de limpar os ferimentos envenenados que recebera durante a batalha.
   Mas, ao afastar-se, tinha-se esquecido de um pedaço da monstruosa serpente, o mais pequeno. Era a extremidade da cauda, com mais de dois metros, cinzenta como um ramo morto de uma árvore e onde a parte cortada tinha a aparência de uma almofada de carne rósea. E esse pedaço de carne torcia-se no meio da erva como se procurasse à sua volta os restos do corpo a que pertencera uns momentos antes. Um espetáculo tão triste como ridículo e que fazia rir Sanu, o macaco, instalado num ramo de imbondeiro.
   Foi então que apareceu Wan-Bo. Pastava, há horas e horas, o capim gigante, cobiçando as tenras ervinhas que verdejavam junto do chão mas que não podia alcançar por ser demasiado alto.
   E, de repente, quando uma das suas patas se preparava para esmagar o pedaço da serpente que se retorcia na erva, este estendeu-se de súbito e o lado cortado foi prender-se no nariz de Wan-Bo!
   O elefante, surpreendido, recuou, pensando ter sido atacado. Depois sacudiu-se e, com o auxílio das enormes orelhas, esfregou aquela "coisa" contra as hastes de bambu para se livrar dela. Em vão! A cauda da serpente prendera-se com muita força e nada a conseguiria afastar do nariz do elefante.
   Mas, com grande espanto de Wan-Bo, começou a falar. É verdade, começou a falar!
   - Oh, Wan-Bo - gemeu -, não te quero mal algum. Acredita em mim. Não sou mais do que uma cauda, um pequeno pedaço de cauda infeliz e perdida. O dragão-cabeça venceu-me e devorou-me! Vê lá o que resta de mim! E como eu gostaria de continuar a viver...
   Wan-Bo respirou, mais descontraído. Esta criatura merecia-lhe alguma consideração.
   - Falas verdade? Combateste o dragão-cabeça? És muito corajosa! Mas agora estás a perturbar-me. Vai-te embora, por favor!
   A cauda agitou-se freneticamente no nariz de Wan-Bo.
   - Ouve-me, ouve-me, grande Wan-Bo - suplicou, torcendo-se desesperada. - Tive agora uma ideia assombrosa! Ainda não estás habituado à minha presença, mas posso ajudar-te de muitas maneiras e...
   - Nem penses nisso! Já te disse que me incomodas... Vamos lá, ou sais a bem ou esmago-te contra o tronco deste imbondeiro.
   - Não, não, por favor! Ouve: serei tua escrava!
   - Escrava? Escrava?... Mas eu não preciso de ti para nada... - disse Wan-Bo, rindo-se. - Não passas de um miserável pedaço de cauda de serpente! A cauda torcia-se e retorcia-se. O seu espírito funcionava com mais lentidão desde que não tinha cabeça, pois não estava acostumada a pensar sozinha. Mas, de repente, soube o que responder e como convencer o grande elefante.
   - Repara! - exclamou. - Repara, Wan-Bo, como posso ajudar-te...
   E estendeu-se, estendeu-se até ao solo. Aí, tateou um pouco às cegas até encontrar o que procurava: um tufo de ervas bem frescas...
   A cauda enroscou-se e foi levar à boca do elefante a erva rasteira com que ele sempre sonhara. Ah, como era maravilhosa!
   - É tenrinha? É fresca? Queres mais? - perguntava a cauda, enquanto o elefante ia saboreando o apetitoso alimento.
   - Hum, hum... Mais um pouco, por favor!
   A cauda voltou a desenrolar-se uma, duas, três vezes... até que Wan-Bo, satisfeito e saciado, começou a sentir esse torpor infinitamente agradável que precede as longas digestões.
   Mas, de repente, sentiu o estômago novamente vazio. Os pequenos olhos de Wan-Bo tinham acabado de poisar numa mangueira... Oh, essas mangueiras cujos frutos doirados e sumarentos se escondiam no meio da folhagem! Há quanto tempo sonhava com eles!
   - E... e... talvez me possas ajudar a colher aqueles belos frutos doirados... - perguntou, um tanto perturbado por ter de confessar a sua insaciável gulodice.
   - Basta que mos indiques, ó meu senhor!
   Wan-Bo trotou até junto da árvore, e a cauda da serpente gigante ergueu-se no ar.
   - Sou cega, meu senhor. Orienta-me!
   - É aquele... Sim, mais à direita! Que bom! E o outro ao lado! - murmurava Wan-Bo, que nunca tinha comido nada tão saboroso em toda a sua vida.
   - E, assim, dirigida em volta do fruto apetecido, a cauda da serpente arrancava-o cuidadosamente para não o esmigalhar, e levava-o à boca de Wan-Bo. Este pensava que nunca mais teria medo de envelhecer. A sua cauda - mas seria na verdade "uma cauda"? - cuidaria dele, alimentá-lo-ia...
   Ao cair do dia, Wan-Bo e a cauda da serpente já se haviam tornado os melhores amigos do mundo. E a sua aliança ainda perdura...
   No entanto, houve um dia em que Wan-Bo esteve quase, quase, a perder... a tromba. Foi no dia em que Aroon, o leão, com uma valentíssima sapatada, cortou a extremidade da cauda! Não foi muito grave. Nem demasiado grande nem demasiado pequena, a tromba tornou-se um instrumento tão útil que todos os animais do mato passaram a invejar Wan-Bo.
   Mas um conselho vos dou: se encontrarem o elefante, não façam alusões à sua tromba. Não se divirtam a dizer-lhe que essa espécie de nariz não passa de uma simples cauda de serpente! Em primeiro lugar, porque Wan-Bo pode não gostar da brincadeira... e, depois, porque talvez a tromba ainda conserve parte do lendário rancor das serpentes...
   Nunca se sabe!



Contos Africanos, Ed. Verbo

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