FLORENÇA
Florença é uma cidade luminosa onde os gatos adormecem ao sol e onde as tintas das telas têm mais brilho, tornando quase reais, quase tocáveis as figuras que nelas se encontram representadas. Cidade de pintores, viu nascer, ao longo de séculos, verdadeiros génios da cor e do traço, da forma e da luz.
Já não me lembro, para ser sincero, quando foi que nasci nos arredores dessa cidade que cheirava a laranjas, a ervas aromáticas, a sabão e a rosas. Sei que foi há muito tempo, há tanto que não encontro em mim, por mais que o tente, sinal da data ou do lugar exato.
Recordo-me apenas de um amigo, um rapaz da minha idade, pastor como eu, que saía comigo para os campos cobertos de giestas para apascentar o rebanho da família. Ambos gostávamos muito de desenhar, mas não tínhamos nem carvão, nem tela, nem papel. Só pedra e a argila pareciam ser capazes de receber, no meio dessa pobreza grande em que vivíamos, os traços bonitos que a nossa imaginação ditava.
Às vezes, o meu amigo ficava horas a observar os contornos de uma árvore ou os movimentos de um pássaro ou de uma ovelha e parecia enfeitiçado por aquilo que os seus olhos viam. Eu não conseguia ver tanto e tão longe quanto ele. E chamava-lhe a atenção:
- Se deixas o rebanho ao abandono, logo, ao voltares para casa terás de dar contas ao teu pai por levares animais a menos.
Mas ele não parecia incomodar-se com os meus avisos. Os seus olhos negros e vivos andavam sempre em viagem por cima das coisas simples e belas que havia à nossa volta: um seixo, uma nuvem, a corola de uma flor, uma abelha atarefada na recolha do pólen. E nunca se cansava de olhar, de descobrir, de aprender. Os seus olhos, muito mais do que os meus, eram incansáveis viajantes à descoberta de cores, de formas, de mundos ocultos.
Um dia disse-me:
- Como eu gostava de pintar frescos tão bonitos como os que há na igreja de S. Martinho, mas não tenho tintas nem sei a maneira de as misturar.
- Há de chegar um dia - consolava-o eu - em que hás de ter dinheiro e saber bastante para conseguires fazer isso e muito mais.
Os seus olhos tornavam-se ainda mais brilhantes ao escutar estas palavras e eu não conseguia imaginar que fantásticos pensamentos lhe povoavam o espírito quando falávamos dessas coisas ainda tão distantes.
José Jorge Letria, Pelo Fio de Um Sonho