PEQUENAS/GRANDES INSUBMISSÕES
As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida lembro duas.
Começava um ano letivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da Piedade. Cheguei de férias da minha terra e vi o Vítor a andar de carrossel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contanto: vinte. O Vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O Vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrossel.
Outra grande insubmissão foi a do Maurício, também nos primeiros anos do liceu.
Um dia o Maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o Maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar bola ao cesto.
- Ó Maurício, faltaste à aula das nove.
E o Maurício, sem responder, imperturbável, continua a lançar a bola ao cesto.
Tocou para a aula das dez.
- Ó Maurício, não vens à aula?
O Maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O Maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O Maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.
Ruy Belo, Homem de Palavra (s)
Sem comentários:
Enviar um comentário