Memórias do rio da minha aldeia
Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz de mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca.
(...)
Tinha eu ido com os meus petrechos a pescar na foz do Almonda, chamávamos-lhe "boca do rio", onde por uma estreita língua de areia se passava nessa época ao Tejo, e ali estava, já o dia fazia as despedidas, sem que a bóia de cortiça tivesse dado sinal de qualquer movimento subaquático, quando, de repente, sem ter passado antes por aquele tremor excitante que denuncia os tenteios do peixe mordiscando o isco, mergulhou de uma só vez nas profundas, quase me arrancando a cana das mãos. Puxei, fui puxado, mas a luta não durou muito. A linha estaria mal atada ou apodrecida, com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbada. Imagine-se agora o meu desespero. Ali, à beira do fundão onde o malvado devia estar escondido, a olhar a água novamente tranquila, com a cana inútil e ridícula nas mãos, sem saber o que fazer. Foi então que me ocorreu a ideia mais absurda de toda a minha vida: correr a casa, armar outra vez a cana de pesca e regressar para ajustar contas definitivas com o monstro. Ora, a casa dos meus avós ficava a mais de um quilómetro do lugar onde me encontrava, e era preciso ser pateta de todo (ou ingénuo, simplesmente) para ter a disparatada esperança de que o barbo iria ficar à espera entretendo-se a digerir não só o isco mas também o anzol de chumbo, e já agora a bóia, enquanto a nova pitança não chegava. Pois apesar disso, contra razão e bom senso, disparei a correr pela margem do rio fora, atravessei olivais e restolhos para atalhar caminho, irrompi esbaforido pela casa dentro, contei à minha avó o sucedido enquanto ia preparando a cana, e ela perguntou-me se eu achava que o peixe ainda lá estaria, mas eu não ouvi, não a queria ouvir, não a podia ouvir. Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci. Ali estive até quase não distinguir a boia que só a corrente fazia oscilar um pouco, e, por fim, com a tristeza na alma, enrolei a linha e regressei a casa. Aquele barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma maneira ou outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.
José Saramago, As Pequenas Memórias,
Ed. Caminho
Ed. Caminho
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