domingo, 31 de maio de 2015

OS BICHOS DO CAMPO

   Outra vantagem dos campos eram os bichos, a saber e por ordem alfabética: borregos, burros, cabras, coelhos, galinhas, gatos, pássaros, patos, o peru do Natal, pombas e porcos. Os cães dos senhores chamavam-se umas vezes Tejo outras vezes Fiel. O cão do quinteiro chamava-se Cartuxo. Os gatos da casa não tinham nome, eram gatos, só. O gato do quinteiro era uma gata e chamava-se Popeline. Os bichos dividiam-se em várias classes, a saber: a) os que brincavam com ele, como os cães e os gatos; b) os que o deixavam brincar, mas não correspondiam, como os borregos e as cabras; c) os que serviam para ele correr atrás deles, como as galinhas e as pombas; d) os que fugiam, como os pássaros; e) os que ele não se chegava ao pé, como os cavalos e os burros; f) os que lhe metiam medo, como os bois; g) os que serviam para ele pegar ao colo sem as pessoas grandes verem, como os coelhos quando eram pequeninos; h) o que fazia gluglu quando ele assobiava, como o peru do Natal; i) os que faziam habilidades e eram os do circo.

António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor

sábado, 30 de maio de 2015

OS ALPINISTAS

O alpinismo nasceu na França em 1786
quando dois homens atingiram
pela primeira vez o pico
do Monte Branco (4807 m).
Gigante entre os gigantes, o Evereste
foi conquistado em 1953.
Nos Himalaias
centenas de carregadores
conduzem até ao acampamento
de base, material, víveres
e medicamentos. O grupo
de alpinistas prossegue
a ascensão sozinho,
lutando por vezes
contra ventos a mais
de 150 km/h. Quanto mais
se sobe, menos
oxigénio há no ar.
Cada passada é um esforço.
Gelados, esgotados,
os homens vencem
os últimos metros
que os separam
do cimo.
Vitoriosos e felizes,
eles descobrem
a imensidade
que os rodeia.

Anne de Henning, A Montanha, 
Tetos do Mundo

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sexta-feira, 29 de maio de 2015

ADIVINHAS

1

Eu entro em toda a casa,
Com gente me desespero;
Como com el-rei à mesa,
Daqueles pratos que quero.
Seja a moça mais formosa,
Mais pobre, mais abastada
Mesmo diante de todos
Por mim há de ser beijada.

2

À meia noite se levanta o francês;
Conta as horas, não conta o mês;
Traz esporas, não é cavaleiro;
Tem serra, não é carpinteiro;
Tem picão, não é pedreiro;
Cava a terra, não ganha dinheiro.

3

Meu ser começa num ponto
E num ponto há de acabar;
Nem que digam o nome todo,
Metade vem a faltar.

 


Soluções: 1 - a mosca; 2 - o galo; 3 - a meia

quinta-feira, 28 de maio de 2015

   TROVOADA


   De todos os fenómenos meteorológicos que habitualmente assistimos é, sem dúvida, o relâmpago, e o trovão que o acompanha, o mais impressionante e pavoroso. Assusta olhar o céu, numa tempestuosa noite escura, e vê-lo de repente fender-se de alto a baixo, rasgado por um golpe de luz vivíssima que, num ápice, revela a paisagem oculta nas trevas, para de novo as mergulhar nas mesmas trevas. Mas, desaparecida a visão sinistra, logo rebenta sobre as nossas cabeças um estrondo medonho, um disparo repentino que se prolonga numa cavalgada sonora aterradora. É uma cena teatral, de grande espetáculo, que a natureza nos oferece de quando em quando.
   Compreende-se os terrores que os homens do passado, ignorantes e desprevenidos, sentiriam perante a grandeza de tal acontecimento. Coisa vinda diretamente do céu, com tão espantosos efeitos, só poderia ser interpretada como manifestações de seres poderosíssimos que tinham nas mãos os destinos dos homens. O relâmpago era o sinal da existência de deuses que desse modo nos castigavam por qualquer ato que teríamos praticado e que não lhes agradara. O trovão era a sua voz ralhando connosco. Os nossos antepassados caíam de bruços implorando perdão para o mal que teriam feito e que nem sabiam qual fosse.


Rómulo de Carvalho, A eletricidade estática,
«Cadernos de Iniciação Científica», Editora Sá da Costa


quarta-feira, 27 de maio de 2015

O POLIGLOTA


Ele sabe palrar
Cacarejar
Arrulhar
Gorjear
Mugir
Zunir
Latir
Miar
Bramar
Chiar
Uivar
Ladrar
Rosnar
Grunhir
Zumbir
Rugir
Zurrar
Coaxar
Chilrear
Grasnar
Cricrilar
Crocitar
E também sabe
Falar
Seja a língua que for
Até já o contrataram
Para o jardim zoológico
Como tradutor.


Jorge de Sousa Braga, Poemas com Asas (adaptado)







terça-feira, 26 de maio de 2015

O GATO DE ANNE FRANK


   Eu entrei na vida de Anne Frank, por mero acaso. O nosso encontro deu-se no dia 13 de julho de 1942, e eu acho que Anne gostou de mim logo desde o início.
   Tal como os gatos, Anne passou várias semanas a fazer o reconhecimento, quase centímetro a centímetro, daquela que iria ser a sua futura casa e das outras pessoas nos dois anos que se iam seguir. Eu fiz o mesmo, procurando pequenos orifícios no soalho, pedaços de fio de lã ou de arame com que pudesse brincar e principalmente fendas donde pudessem sair ratos ou baratas que sempre gostei tanto de caçar. Infelizmente aquele espaço estava mais fechado que um ovo antes de o partirem para ser estrelado. E percebe-se por quê.
   É que qualquer orifício por onde pudesse sair luz ou som do interior do esconderijo representava uma terrível ameaça para a já escassa segurança daquelas pessoas sem destino seguro.
   Ainda assisti a verdadeiras sessões de costura em que participavam Anne e o resto da família, tapando com pedaços de pano cosidos uns aos outros todos os espaços por onde pudesse sair uma centelha de luz.
   E a pobre Anne, que não gostava de silêncio e que adorava rir e falar em voz alta, foi obrigada, como todos os moradores do refúgio, a passar dias inteiros a sussurrar e a andar descalça para não fazer qualquer ruído que denunciasse a presença de tanta gente escondida naquele exíguo anexo e no sótão que tinham por cima.


José Jorge Letria, Mouschi, o gato de Anne Frank,
Edições Asa (adapt.)



segunda-feira, 25 de maio de 2015

Misturei num saco:
A palavra chão.
A palavra céu.
A palavra anão.
A palavra réu.

A palavra sol.
A palavra chuva.
A palavra caracol.
A palavra luva.

A palavra alegria.
A palavra tristeza.
A palavra poesia.
A palavra beleza.

E dei o saco cheio ao menino
que, depois de demorado atino,
as encadeou para mim
assim:

O chão
anão
é réu
do céu.

O caracol
ao sol 
não quer luva
nem chuva.

A poesia
é a beleza
da alegria
e da tristeza.

José Manuel Ribeiro, Algazarra de Versos,
 Ed. Trinta por Uma Linha


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domingo, 24 de maio de 2015

Era uma vez...

Era uma vez um menino,
Um menino pequenino,
De perninhas arqueadas...
E o menino vai crescendo,
Engatinha, faz tem-tem.
Um dentinho... Dois ratinhos...
Bate palmas... Já diz "mãe"...
O menino vai crescendo.

Era uma vez um menino,
Um menino já grandito.
Já come por sua mão,
Já fala, já anda e corre
Já toca no seu tambor,
Trão-tão-tão e trão-tão-tão...
E o menino vai crescendo
E já não é um menino.
E já não é um menino.

É agora um rapazito.
Pegou na mala dos livros,
E foi para a escola aprender.
Já lê, já escreve, já conta,
Joga ao pião, ao berlinde,
Pernas sujas, esfoladas,
Calções rotos, botas tortas...
Vai crescendo, vai crescendo,
Rapazito já não é.

Patrícia Joyce, Romance da Gata Preta



sábado, 23 de maio de 2015

O CEGO E O MEALHEIRO

   Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantidade de moedas. Para que ninguém lhas roubasse, tinha-as metido dentro duma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo duma figueira. Ela lá sabia o lugar, e, quando arranjava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro.
   Ora um vizinho espreitou-o, viu onde é que ele tinha a panela e foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta, ficou muito calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava maneira de tornar a apanhar o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou que por força teria de ser o vizinho. Tratou de ir à fala com ele e disse-lhe:
   - Olhe, meu amigo, quero contar-lhe uma coisa muito em particular, que ninguém nos ouça.
   - Então o que é, senhor vizinho?
   - Eu ando doente e isto há viver e morrer. Por isso quero dar-lhe parte que tenho algumas moedas enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para si, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tinha aí num buraco mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.
   O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção, e naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro aonde ela estava, no fito de apanhar o resto do tesouro. Quando bem entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e levou-a para casa. Depois desatou num grande berreiro, para que o vizinho o ouvisse:
   - Roubaram-me! Roubaram-me tudo!
   E daí em diante guardou as suas moedas num sítio onde ninguém soube.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português,
Pub. Dom Quixote

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sexta-feira, 22 de maio de 2015

VOO


Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicolores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.


Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós,
as palavras voam.


E às vezes pousam.


Cecília Meireles, Melhores Poemas,
São Paulo, Global Ed., 1996





quinta-feira, 21 de maio de 2015

O SAL E A ÁGUA



   Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas, por sua vez, qual era a mais sua amiga? A mais velha respondeu:
   - Quero mais a meu pai do que à luz do Sol.
   Respondeu a do meio:
   - Gosto mais do meu pai do que de mim mesma.
   A mais moça respondeu:
   - Quero-lhe tanto como a comida quer o sal.
   O rei entendeu por isto que a filha mais nova  o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio dum rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia; foi passando, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza.
   Começou então a espreita-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas do noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que nada comia. Por fim  perguntou-lhe o dono da casa por que é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
   - É porque a comida não tem sal.
   O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer por que é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça do pai.




Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português,
Pub. Dom Quixote

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A CASA BRANCA DA PRAIA



   Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
   Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia.
   Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com um barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios,  de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se "Vai ali um peixe" e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.
   O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz.
   Em setembro veio o equinócio. Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros, chuvas, temporais. As marés altas varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo. E o rapazito pensava que, lá fora, na escuridão da noite, se travava uma imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. mas por fim, cansado de escutar, adormeceu embalado pelo temporal.




Sophia de Mello Breyner Andresen, A Menina do Mar,
 Figueirinhas

terça-feira, 19 de maio de 2015

O SORRISO de ROBINSON


   Robinson nunca fora vaidoso e não sentia prazer especial em se ver ao espelho. No entanto, havia tanto tempo que isso não lhe acontecia que ficou muito surpreendido quando um dia, ao tirar um espelho de um dos baús do Virgínia, pôde voltar a ver o seu próprio rosto. Ao fim e ao cabo, não mudara muito. Apenas a barba estava mais comprida e muitas rugas novas lhe sulcavam agora a face. O que o inquietou, apesar de tudo, foi o seu ar sério, uma espécie de tristeza que nunca o abandonava. Tentou sorrir. Nessa altura sentiu um calafrio, ao dar-se conta de que não era capaz. Bem se esforçou; tentou a todo o custo franzir os olhos e levantar os cantos da boca. Impossível: já não sabia sorrir. Tinha a impressão de que o seu rosto era de madeira, uma máscara imóvel, congelada numa expressão taciturna. Depois de muito refletir, acabou por compreender o que se passava. Era por estar sozinho. Havia demasiado tempo que não tinha alguém a quem sorrir, e deixara de saber fazê-lo: quando queria esboçar um sorriso, os músculos não lhe obedeciam. Continuou a olhar-se ao espelho com uma expressão dura e severa e o coração apertava-se-lhe de tristeza. Assim, tinha tudo o que necessitava naquela ilha: bebida e comida, uma casa, uma cama para dormir; mas ninguém a quem sorrir, e o seu rosto era como gelo.
   Foi então que baixou os olhos para Tenn. Estaria Robinson a sonhar? O cão estava a sorrir-lhe! Num dos lados do focinho o lábio negro estava levantado, pondo a descoberto uma dupla fila de colmilhos. Ao mesmo tempo, inclinava comicamente a cabeça para um dos lados e os olhos cor de amêndoa franziam-se ironicamente. Robinson agarrou com ambas as mãos a grande cabeça felpuda e as pálpebras humedeceram-se-lhe de emoção, enquanto um impercetível tremor lhe agitava as comissuras dos lábios. Tenn continuava a sorrir-lhe à sua maneira e Robinson olhava-o atentamente, para responder a sorrir.
   A partir desse momento, foi como que um jogo entre ambos. De repente, Robinson interrompia o trabalho, ou a caçada, ou o passeio pela praia, e fixava Tenn de certa maneira. O cão sorria-lhe a seu modo, enquanto o rosto de Robinson recuperava a maleabilidade e se humanizava e, pouco a pouco, sorria.


Michel Tournier, Sexta-Feira ou a Vida Selvagem,
Editorial Presença

segunda-feira, 18 de maio de 2015

UMA NOVA PALAVRA

Eu quero uma nova palavra
diferente das outras palavras
que cansei de repetir,
uma palavra de vento,
uma palavra que o tempo
seja incapaz de ferir.
Eu quero uma nova palavra,
mistura de sol e de frio,
de barcos descendo um rio,
cheia de céu e de mar.
Eu quero uma nova palavra
aberta de par em par
como o rosto de um menino
com paisagens no ouvido
e cantigas no olhar.

João Pedro Mésseder, De Que Cor é o Desejo?,
Ed. Caminho



domingo, 17 de maio de 2015

RIBEIRA MOTA


Meus senhores
aqui está o homem
que faz a faca
que mata o boi
que bebe a água
que apaga o lume
que queima o pau
que bate no cão
que morde o gato
que papa o rato
que lambe o sebo
que unta a corda
que prende a bota
que leva o vinho
à ribeira mota.




Alice Vieira, Eu bem vi nascer o sol, Antologia da poesia popular portuguesa,
Caminho






sábado, 16 de maio de 2015

ERA UMA VEZ...


   Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
   Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
   - Pai!
   Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.


Mia Couto, "A menina sem palavra", in Contos do Nascer da Terra,
Caminho, 2002



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sexta-feira, 15 de maio de 2015

A FAMÍLIA

Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
um bom farnel
sopa de couves com feijão
para ir também
à pescaria do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão

vamos para casa
disse o esturjão

Mário Henrique Leiria, Novos Contos do Gin,
 Estampa, 1973

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Lisboa, 3 de fevereiro de 1993




   Querida Marta




   Odeio a época do Carnaval. Sempre detestei carnavalices. Lembro-me daquelas fatiotas ridículas que a minha mãe nos obrigava a vestir (a mim e ao Traumatizado) quando éramos pequenos. Acho que nunca me esquecerei daquelas cenas tristes que, inexplicavelmente, faziam sempre rir os grandes. Tenho cá um azar ao mês de fevereiro! Na escola é o desatino do costume: continuam com as abomináveis tradições de atirar ovos, água, tinta e outras bodegas para cima de toda a gente, como se isso tivesse alguma piada. É incompreensível. Num mundo onde milhões morrem à fome, gastam-se ovos e tomates em guerrilhas de corredores das escolas! É proibido, claro, mas, por isso mesmo, todos os anos é a mesma guerra. Lá vão uns dias para casa, de castigo, mas não se ralam, muito pelo contrário.




Maria Teresa Maia Gonzalez, in A Lua de Joana,
 Verbo


quarta-feira, 13 de maio de 2015

ANEDOTA


   A professora de Inglês ensinou na aula três novas cores: green (verde), yellow (amarelo) e pink (cor de rosa). Em seguida, pediu aos alunos que, em casa, escrevessem uma pequena composição que incluísse as três cores.
   No dia seguinte, o Luisinho leu:
   - "Levantei-me da cama que tem lençóis pink, olhei para a relva que era green e para o sol que era yellow!"
   - Muito bem - disse a professora. - E tu, Joãozinho?
   - "Peguei no meu carro pink e cheguei aos semáforos que ficaram yellow. Quando passaram a green fui embora. "
   - Muito bem - disse a professora. - Agora tu, Zezinho, que é que escreveste?
   - Senhora professora, estava em casa a jantar e tocou o telefone: green, green...; levantei o auscultador e disse: yellow, yellow...; como ninguém respondeu, pink, desliguei.

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terça-feira, 12 de maio de 2015

CASUÍSTICA

Um padre de largo peito
Exclamava em voz profunda:
"Sim, caríssimos irmãos!
Deixai lá queixumes vãos;
Quanto Deus faz é bem feito!"

Vai-se dali um corcunda:
- Salvo o devido respeito,
Já nem marreca é defeito!...
Sou eu são e escorreito? -
Ele, ao vê-lo, com efeito,

Sem poder olhar direito,
De pescoço contrafeito,
Ombros largos, peito estreito,
Roçando os pés com as mãos:
"E quem duvida, cristãos!
Que é um corcunda... perfeito?!"

João de Deus, Campo de Flores, vol. II,
Companhia Editora Portugal-Brasil

segunda-feira, 11 de maio de 2015

PALAVRAS DUM AVESTRUZ
 TODO GRIS


Arrancaram-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.


E, se quisesse,
Podia
Morder-lhes as mãos morenas
A esses
Que sem piedade
Me roubaram estas penas que me cobrem.


E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando
Desguarnecido.


E elas,
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
- Que são minhas! -
Passam, por mim, desdenhosas
Em gargalhadas mesquinhas.


Sim; eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.


António Botto, Canções e Outros Poemas, Quasi Edições
Poeta português (1897-1959)




domingo, 10 de maio de 2015

A SURPRESA



   - Levanta-te depressa, Nicolau. Tenho uma surpresa para ti.
   - É um carrinho? - perguntei eu. - Um vagão de mercadorias para o meu comboio? Uma caneta? Uma bola de râguebi?
   - Não - disse a mamã. - É um pulôver.
   E então eu fiquei dececionado, porque as coisas para vestir não são surpresas a sério.
   E então foi terrível! A mamã ficou bestialmente zangada, disse-me que eu era um ingrato, que tinha corrido as lojas todas e que não tinha sido fácil arranjar um pulôver assim tão bonito.
   - É um pulôver de bebé! - exclamei eu.
   - Queres um açoite? - perguntou-me a mamã.
   Portanto, como vi que não era altura para graças, vesti o meu pulôver, que era azul-claro, com três patos amarelos, cada um por cima do outro, e desatei a chorar.
   A caminho da escola, eu ia bastante aborrecido porque sabia que os meus amigos iam gozar comigo quando vissem os meus patos. Mesmo com o casaco bem abotoado até ao pescoço, via-se o pato de cima a rir-se.
   Os meus amigos estavam a jogar ao berlinde e o Alceste virou-se quando eu cheguei.
   - Jogas? - perguntou-me ele.
   - Não - respondi. - E, além disso, deixem-me em paz!
   - Ora essa, que é que tens? - perguntou-me o Eudes.
   - E se o meu pulôver não vos agrada, levam umas boas estaladas - disse eu.
   - Oh! - exclamou o Godofredo. - Um pato! O Nicolau tem um pato!
   E então o Godofredo pôs-se a correr, com as pernas afastadas, a abanar os braços, enquanto se virava para mim e gritava: "Quá-quá! Quá-quá!"


Gosciny e Sempé, O Balão do Menino Nicolau e Outras Histórias Inéditas,
Teorema (adaptado)

sábado, 9 de maio de 2015

AVÔ CROCODILO


Diz a lenda
e eu acredito!


O sol na pontinha do mar
abriu os olhos
e espraiou os seus raios
e traçou uma rota


Do fundo do mar
um crocodilo pensou buscar o seu destino
e veio por aquele rasgo de luz


Cansado, deixou-se estirar
no tempo
e as suas crostas se transformaram
em cadeias de montanhas
onde as pessoas nasceram
e onde as pessoas morreram


Avô crocodilo


- diz a lenda
e eu acredito
É Timor!


Xanana Gusmão, Mar Meu, Poemas e Pinturas,
 Granito Editores e Livreiros



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sexta-feira, 8 de maio de 2015

A SENHORA DA GRAÇA



   Era uma vez um homem que era casado com uma mulher, muito amiga do vinho, a ponto de não deixar parar vinho na adega. Um dia o homem saiu para comprar uns bois, e recomendou à mulher que não fosse à adega beber o vinho. Apenas o homem virou costas, a mulher chamou logo uma comadre e foram ambas para a adega beber o melhor pipo de vinho que encontraram. O homem, quando voltou para casa e se achou sem o vinho, queria bater na mulher;  mas ela disse-lhe que não lhe batesse, pois estava inocente, quem tinha bebido o vinho tinha sido a gata. Como o homem não quisesse acreditar, a mulher disse-lhe: "Pois olha, homem, havemos de ir à Senhora da Graça, e havemos de perguntar-lhe quem foi que bebeu o vinho, se fui eu ou a gata; se a Senhora disser que fui eu, hei de trazer-te às costas para casa, e se eu estiver inocente hás de tu trazer-me a mim."
   Partiu o homem mais a mulher para a Senhora da Graça e, tendo chegado a um sítio onde havia um eco, a mulher disse ao homem: "Olha, escusamos de ir mais longe; Nossa Senhora também aqui nos ouve." O homem então gritou com toda a força: "Dizei-me, Senhora da Graça, quem bebeu o vinho, foi a mulher ou foi a gata?" E o eco respondeu: "A gata".
   Três vezes o homem perguntou o mesmo, e três vezes o eco lhe respondeu: "a gata". O homem então, convencido que a mulher estava inocente, levou-a às costas para casa, e matou a gata para ela não lhe ir beber mais o vinho.




Adolfo Coelho, in Contos Tradicionais Portugueses,
Iniciativas Editoriais, 1977





quinta-feira, 7 de maio de 2015

O FIM DE UM VOO


   O gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios de barriga para cima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.
   No preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o zumbido provocado por um objeto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.
   Era uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e mal cheirosa.
   Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas.
   - Não foi uma aterragem muito elegante - miou.
   - Desculpa. Não pude evitar - reconheceu a gaivota.
   - Olha lá, tens um aspeto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal cheiras! - miou Zorbas.
   - Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer - grasnou a gaivota num queixume.
   - Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não vais até ao jardim zoológico? Não é longe daqui e há lá veterinários que te poderão ajudar - miou Zorbas.
   - Não posso. Foi o meu voo final - grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.
   - Não morras! Descansa um pouco e verás que recuperas. Tens fome? Trago-te um pouco da minha comida, mas não morras - pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.
   Vencendo a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além do mais, sabia horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.
   - Olha amiga, quero ajudar-te mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente - miou Zorbas, preparando-se para trepar ao telhado.
   Ia a afastar-se na direção do castanheiro quando ouviu a gaivota  a chamá-lo.
   - Queres que te deixe um pouco da minha comida? - sugeriu ele algo aliviado.
   - Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso vou pedir-te que me faças três promessas. Fazes? - grasnou ela, sacudindo desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr de pé.
   Zorbas pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão lastimoso ninguém podia deixar de ser generoso.
   - Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa - miou ele compassivo.
   - Não tenho tempo para descansar. promete-me que não comes o ovo - grasnou ela abrindo os olhos.
   - Prometo que não te como o ovo - repetiu Zorbas.
   - Promete-me que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.
   - Prometo que cuido dele até nascer a gaivotinha.
   - E promete-me que a ensinas a voar - grasnou fitando o gato nos olhos.
   Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar, como estava completamente louca.  - Prometo ensiná-la a voar. E agora descansa, que vou em busca de auxílio - miou Zorbas trepando de um salto para o telhado.
   Kengah olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e, justamente ao exalar o último suspiro, um pequeno ovo branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo.

Luís Sepúlveda, História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar,
Porto Editora


Esta é a história do gato Zorbas e da gaivota Ditosa, dois amigos improváveis. Uma história deliciosa que agrada a pequenos e grandes. O autor, Luís Sepúlveda, oferece-nos uma bela fábula com uma mensagem de esperança.


segunda-feira, 4 de maio de 2015

VIAJAR É CORRER MUNDO


Viajar é correr Mundo
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da Terra
ou as ondas do Mar Alto...
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios
e ribeiros
e pessoas
e lugares...
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o Mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros.


Alves Redol, Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian,
 1990

domingo, 3 de maio de 2015

A RÃ MAINU

Conto popular de Angola



   Quando o filho de Kimanaueza chegou à idade de casar, o pai perguntou-lhe se queria escolher noiva. Ele deu uma resposta surpreendente:
   - Não me casarei com uma mulher da Terra, só casarei com a filha do rei Sol e da rainha Lua.
   - E como é que pensas pedi-la em casamento?
   - Cá me hei de arranjar.
   O rapaz escreveu uma carta e foi pedir a uma zebra que a levasse. Ela recusou:
   - Sendo um animal terrestre, não posso ir ao Céu levar a carta.
   - Tens razão, vou arranjar outro mensageiro.
   Depois de falar com o antílope, que lhe deu uma resposta semelhante à da zebra, o rapaz procurou quem pudesse voar. Teve uma conversa com o falcão, que ainda agitou as asas mas desistiu.
   - Desculpa, não te posso valer, o Céu é muito alto.
   Quanto ao abutre, foi mais direto:
   - Nem penses. O fôlego só me permite ir até meio caminho.
   Desconsolado, o rapaz guardou  a carta. Acontece que a notícia daquele estranho desejo já se tinha espalhado pela aldeia e chegou aos ouvidos da rã Mainu, que resolveu ir oferecer os seus serviços. O rapaz ficou admirado e até zangado:
   - Como te atreves a dizer que vais ao Céu, se aqueles que possuem asas garantem que não é possível?
   - Dá-me a carta e eu levo-a - insistiu a rã Mainu.
   Ele acedeu com maus modos:
   -  Toma. Mas olha que se não cumprires o combinado, levas uma sova.
   A rã não ficou nada aflita. Sabia que os criados do rei Sol tinham por hábito descer à Terra para recolher água num poço, e tratou de se esconder nesse poço com a carta presa na boca.
   Pouco depois ouviu barulho, percebeu que alguém lançara à água um balde, enfiou-se lá dentro e assim viajou até ao Céu sem ninguém saber.
   Chegando ao destino, deu um pulo e foi colocar a carta no quarto do rei Sol e da rainha Lua. Eles ficaram muito admirados quando leram a carta mas aceitaram o pedido. A rã Mainu regressou a casa pelo mesmo processo. A noiva desceu à Terra deslizando por um fio especial tecido pela aranha que servia o rei.
   O rapaz casou com a filha do rei Sol e da rainha Lua, foram felizes para sempre e tudo graças à inteligência viva da rã Mainu.




Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada,
Rãs, Príncipes e Feiticeiros, Ed. Caminho

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sábado, 2 de maio de 2015

Memórias do rio da minha aldeia



   Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz de mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca.
   (...)
    Tinha eu ido com os meus petrechos a pescar na foz do Almonda, chamávamos-lhe "boca do rio", onde por uma estreita língua de areia se passava nessa época ao Tejo, e ali estava, já o dia fazia as despedidas, sem que a bóia de cortiça tivesse dado sinal de qualquer movimento subaquático, quando, de repente, sem ter passado antes por aquele tremor excitante que denuncia os tenteios do peixe mordiscando o isco, mergulhou de uma só vez nas profundas, quase me arrancando a cana das mãos. Puxei, fui puxado, mas a luta não durou muito. A linha estaria mal atada ou apodrecida, com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbada. Imagine-se agora o meu desespero. Ali, à beira do fundão onde o malvado devia estar escondido, a olhar a água novamente tranquila, com a cana inútil e ridícula nas mãos, sem saber o que fazer. Foi então que me ocorreu a ideia mais absurda de toda a minha vida: correr a casa, armar outra vez a cana de pesca e regressar para ajustar contas definitivas com o monstro. Ora, a casa dos meus avós ficava a mais de um quilómetro do lugar onde me encontrava, e era preciso ser pateta de todo (ou ingénuo, simplesmente) para ter a disparatada esperança de que o barbo iria ficar à espera entretendo-se a digerir não só o isco mas também o anzol de chumbo, e já agora a bóia, enquanto a nova pitança não chegava. Pois apesar disso, contra razão e bom senso, disparei a correr pela margem do rio fora, atravessei olivais e restolhos para atalhar caminho, irrompi esbaforido pela casa dentro, contei à minha avó o sucedido enquanto ia preparando a cana, e ela perguntou-me se eu achava que o peixe ainda lá estaria, mas eu não ouvi, não a queria ouvir, não a podia ouvir. Voltei ao sítio,  já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci. Ali estive até quase não distinguir a boia que só a corrente fazia oscilar um pouco, e, por fim, com a tristeza na alma, enrolei a linha e regressei a casa. Aquele barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma maneira ou outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.




José Saramago, As Pequenas Memórias,
 Ed. Caminho



sexta-feira, 1 de maio de 2015

A arca de Noé



   Numa noite de insónia, Noé recebeu um aviso divino de que ia haver um dilúvio e foi incumbido de construir uma arca grande e resistente para albergar e preservar as várias espécies animais.
   Quando Noé iniciou o trabalho, o sol resplandecia e não havia nuvens no horizonte. Mas ele era consciente e, ao fim de muitos dias de labuta, concluiu a obra. Achou-a admirável, e até ficou comovido.
   Apesar da indiferença inicial pela obra de Noé, a notícia do dilúvio correu o mundo inteiro e houve quem demorasse a chegar. Todos queriam um lugar a bordo mas não houve atropelos. Como Noé planeara, o espaço chegava.
   Ao acabar a contagem, ajudado pela mulher, ele nem queria acreditar no número de animais que ali estavam.
   - Oxalá tenham vindo todos!
   Olhou para o céu. Apesar de distantes, viam-se agora nuvens escuras, ameaçadoras. O vento soprava. Primeiro levantou poeira, depois arrancou folhas de árvores e até alguns ramos.
   - Se isto for grave, achas que a arca aguenta? - perguntou a mulher, receosa. - A madeira é boa? Não tem caruncho?
   De súbito, nuvens enormes e escuras, chocaram umas com as outras e ouviu-se um trovão assustador. Os bichos, aterrados, agarraram-se ao que podiam. Os mais pequenos esconderam-se nas frinchas da madeira.
   Ao orvalho da madrugada, seguiu-se um denso nevoeiro e depois uma chuva miudinha. Os pingos engrossaram e choveu como se tivessem aberto torneiras no céu. Em breve tudo ficou alagado. E Noé ordenou:
   - Ninguém sai da arca!
   O burburinho deu lugar ao silêncio. O medo apoderou-se de todos. Quando se fechou a porta da arca, não houve quem não sentisse um aperto no coração ou arrepios pelo corpo.
   Diz-se que um dilúvio avassalador se abateu sobre a Terra. Mal sabiam os tripulantes da arca que a catástrofe duraria quarenta dias e quarenta noites.


Pedro Strecht, A Arca de Noé,
Ed. Presença (texto adaptado)