sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é consciência.

‘Stá bem, enquanto não vêm,
Vamos florir ou pensar.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 25 de novembro de 2015


O NOSSO MUNDO É ESTE
O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.
Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…
Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem,
dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este….

( Mas há-de ser outro.)


José Gomes Ferreira


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O SAPATEIRO POBRE

   Havia um sapateiro que trabalhava à porta de casa e todo o santíssimo dia cantava. Tinha muitos filhos, que andavam rotinhos pela rua, pela muita pobreza e, à noite, enquanto a mulher fazia a ceia, o homem puxava da viola e tocava os seus batuques muito contente.
   Ora, defronte do sapateiro morava um ricaço que reparou naquele viver e teve pelo sapateiro tal compaixão que lhe mandou dar um saco de dinheiro, porque o queria fazer feliz.
   O sapateiro lá ficou admirado. Pegou no dinheiro e à noite fechou-se com a mulher para o contarem. Naquela noite, o pobre já não tocou viola. As crianças, como andavam a brincar pela casa, faziam barulho e levaram-no a errar na conta, e ele teve de lhes bater. Ouviu-se uma choradeira, como nunca tinham feito quando estavam com mais fome. Dizia a mulher:
   - E agora, que havemos nós de fazer a tanto dinheiro?
   - Enterra-se!
   - Perdemos-lhe o tino. É melhor metê-lo na arca.
   - Mas podem roubá-lo! O melhor é pô-lo a render.
   - Ora, isso é ser onzeneiro!
   - Então levantam-se as casas e fazem-se de sobrado e depois arranjo a oficina toda pintadinha.
   - Isso não tem nada com a obra! O melhor era comprarmos uns campinhos. Eu sou filha de lavrador e puxa-me o corpo para o campo.
   - Nessa não caio eu.
   - Pois o que me faz conta é ter terra. Tudo o mais é vento.
   As coisas foram azedando, palavra puxa palavra, o homem zanga-se, atiça duas solhas na mulher, berreiro de uma banda, berreiro da outra, naquela noite não pregaram olho.
   O vizinho ricaço reparava em tudo e não sabia explicar aquela mudança. Por fim, o sapateiro disse à mulher:
   - Sabes que mais? O dinheiro tirou-nos a nossa antiga alegria. O melhor era ir levá-lo outra vez ao vizinho dali defronte, e que nos deixe cá com aquela pobreza que nos fazia amigos um do outro!
   A mulher abraçou aquilo com ambas as mãos, e o sapateiro, com vontade de recobrar a sua alegria e a da mulher e dos filhos, foi entregar o dinheiro e voltou para a sua tripeça a cantar e a trabalhar como de costume.

Viale Moutinho, Contos Populares Portugueses


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Luís, o poeta, salva a nado o poema

Era uma vez
um português
de Portugal.
O nome Luís
há de bastar 
toda a nação
ouviu falar.
Estala a guerra
e Portugal
chama Luís
para embarcar.
Na guerra andou
a guerrear
e perde um olho
por Portugal.
Livre da morte
pôs-se a cantar
o que sabia
de Portugal.
Dias e dias
grande pensar 
juntou Luís
a recordar.
Ficou um livro
ao terminar
muito importante
para estudar.
Ia num barco
ia no mar
e a tormenta
vá d'estalar.
mais do que a vida
há de guardar
o barco a pique
Luís a nadar.
Fora da água
um braço no ar
na mão o livro
há de salvar.
Nada que nada
sempre, a nadar
livro perdido
no alto mar.
- Mar ignorante
que queres roubar?
A minha vida
ou este cantar?
A vida é minha
ta posso dar
mas este livro
há de ficar.

Almada Negreiros, Obras Completas


sábado, 14 de novembro de 2015


As estações do ano

   As estações do ano acusam-se sobretudo pelo aspeto dos campos; e é natural que o homem da cidade, com um horizonte de fachadas, de telhados e de ónibus não dê pelas vessadas, nem pela coma dos trigos, nem pelos frutos pendentes. As árvores dos jardins e dos passeios perdem e recobram a folha; mas as plantas municipais, graças às técnicas dos jardins, distribuem-se de modo que haja sempre uns palmos de canteiro em flor, diante do citadino. Ora, isso transtorna o sentimento habitual da mudança do tempo.
   Como índice do curso dos dias resta ao emparedado o ritmo de duração dos dias e das noites,- pouco mais. É preciso ir ao campo para ver no álamo nu e na regueira barrenta da quelha a alma do Inverno, no carrapiteiro em flor a Primavera que viça, nas palhas o ardor do Verão, nos estendais da fruta o Outono que pinta os poentes. Depois,a falta de silêncio nas cidades não deixa captar os pequenos murmúrios da paisagem, nem a gasolina queimada deixa aspirar os cheiros da terra seca ou húmida. O aquecimento e as ventoinhas metem o Verão pelo Inverno dentro e o fresco pela canícula. Na ânsia de fabricar um meio físico constante, o homem urbano apaga em volta de si a natureza, e depois mal dá por ela...

Vitorino Nemésio, Viagens ao Pé da Porta

quinta-feira, 12 de novembro de 2015


ILHA da MADEIRA

   (Conta a lenda que, estando Machico e os seus companheiros no mar, ao verem névoas que pousavam sobre as águas, decidiram aproximar-se de barco, descobrindo a terra a que deram o nome de ilha da Madeira).
   De súbito a névoa começou a descerrar-se como se invisíveis mãos apartassem uma cortina para os lados. E viu-se um espetáculo tão belo que pelos marinheiros passou um calafrio e alguns ajoelharam de pasmo sobre as tábuas da barca. À sua frente alevantavam-se rochas alterosas a prumo sobre as ondas; selvas de árvores frondosíssimas vinham de escarpa abaixo até à água; e para além cerros de macia curva desdobravam-se a perder de vista! Era uma das ilhas encantadas que se erguia para o Céu, como um altar de serras e arvoredos entornando ondas de cantos, de cores e de perfumes sobre o mar!

Jaime Cortesão, Contos para Crianças,
Portugália Editora

Ilha da Madeira

terça-feira, 10 de novembro de 2015



Entontecido
como asa que se abre para o azul
abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
sei lá de que destinos ignorados!
Como pirata à hora da abordagem
grito e estremeço
liberto!
Grito e estremeço
perdido o sentido das pátrias
e a cor das raças,
livre para todos os caminhos dos homens!
Inebriado de posse
vou contigo, Vida,
como se fosses a minha namorada
e eu te levasse inteira nos meus braços!

Manuel da Fonseca, Poemas Completos, Forja

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

S.O.S.! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
E vinde salvar-nos!
Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos, 
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...

E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!

José Gomes Ferreira, Poesia III
Círculo de Leitores

terça-feira, 3 de novembro de 2015

A PÉROLA de KINO

   Todos os géneros de pessoas se interessaram por Kino - pessoas com coisas para vender e pessoas com favores para pedir. Kino tinha encontrado a Pérola do Mundo. A essência da pérola misturada com a essência dos homens produziu um curioso precipitado escuro. Toda a gente, subitamente, começou a viver em função da pérola de Kino, e a pérola de Kino penetrou nos sonhos, nas especulações, nos planos, nos futuros, nos desejos, nas necessidades, nos apetites, nas ansiedades de toda a gente, e apenas uma pessoa se erguia no caminho deles, e essa pessoa era Kino, de modo que ele se transformou curiosamente no inimigo de todos. A notícia fez vir à tona algo infinitamente tenebroso e perverso na cidade; o precipitado negro era como o escorpião, ou como a fome ao cheiro da comida, ou como a solidão quando o amor é proibido. As bolsas de veneno da cidade começaram a produzir a sua peçonha e a cidade inchava e ofegava sob a sua pressão.
   Mas Kino e Juana não sabiam destas coisas. Porque estavam felizes e excitados, pensavam que toda a gente partilhava da sua alegria. Juan Tomás e Apolónia partilhavam-na, e eles eram todo o mundo. Ao fim da tarde, quando o Sol tinha transposto as montanhas da Península para mergulhar no mar exterior, Kino acocorou-se na sua casa, com Juana ao seu lado. E a cabana transbordava de vizinhos. [...] Os vizinhos olhavam para a pérola na mão de Kino e perguntavam a si mesmos como fora possível caber tanta sorte a um homem.
   E Juan Tomás, que estava acocorado à direita de Kino, porque era seu irmão, perguntou:
    - Que vais fazer agora que és um homem rico?

John Steinbeck, A Pérola


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

POEMA DO CORAÇÃO

Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos".

Mas o meu coração é como o dos compêndios.
tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.

Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?

António Gedeão, Poemas Escolhidos,
Ed. João Sá da Costa