sábado, 27 de fevereiro de 2016

MESTRE GRILO CANTAVA 
E A ABÓBORA DORMIA

   Era uma abóbora menina, muito redondinha, que saíra de uma flor tão grande e tão linda que de longe parecia um cálice de oiro, o cálice por onde os senhores bispos costumavam dizer missa, e pelo brilho estrela caída do céu. Atraídas pela cor viva e o perfume, que era brando mas suave, zumbiam-lhe as abelhas em volta e um grilinho viera com a caixa de música às costas acolher-se à sua sombra e ali fizera a lura. Perto, dentro de seus buraquinhos, viviam dois ralos, e uma cigarra passava a maior parte do tempo empoleirada numa das folhas da aboboreira a cantar.
   Ora, com os dias, a flor murchara e no seu pedúnculo começou a crescer a abóbora redondinha. Era na entrada do verão e à força de comer do solo, e beber do regadio, um pouco também entorpecida pelo calor, levava a vida a dormir. Crescia e dormia, dormia e crescia. Passavam por cima dela as nuvens ligeiras cmo caravelas e não as via; cantavam as rolas e o cuco, deixá-los cantar: batiam os manguais nas eiras, chiavam os carros da lavoura e a tudo permanecia indiferente. Cresceu, cresceu, e já espigadota, certa noite mais quente, estranho ruído acordou-a. Que fanfarra era aquela? Pôs-se à escuta. As rãs do charco clamavam;
   - Dai-nos sol! Dai-nos sol!
   Curioso, não pediam rei, pediam sol;
   - Dai-nos sol! Dai-nos sol!
   Os ralos e a cigarra acompanhavam;
   - Solzinho! Solzinho! Solzinho!
   O grilo arpejava;
   - E que rico, rico! Que rico, rico! Rico!
   E os sapos lá do fundo do campo em coro trauteavam;
   - Sol, sol, sol! Sol, sol, sol, canta rouxinol! Sol, sol sol!!!
   Que tinham aqueles doidos para fazerem tal banzé em vez de aproveitar o tempo para dormir?! O grilo, que lhe ficava mais perto, foi quem mais a intrigou. Muito negrinho, todo entregue à inspiração, lá ia tocando os pratos, que é como quem diz movendo as asas de ébano com risquinhas de oiro, dum lado para o outro. Que diabo de bicharoco tão patusco e ridículo que não deixava dormir à gente o soninho descansado! E não se contendo mais, gritou-lhe;
   - Eh lá, seu casaca! Você não pode calar a caixa?
   Com tal brequefesta como hei de eu dormir?!
   - Ora a palerma! - retorquiu o grilo, escandalizado. - Não querem lá ver, tem-se na conta de menina e é tão mona. Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e claridade.
   - Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sono.
   - Outro ofício!... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.
   E chocando as asas tornou à cantiguinha!
   - Sol rico! Rico, rico! Rico...
   E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras, respondiam pela várzea fora:
   - Sol, sol, sol! Sol...
   E embalada pela serenata da noite a abobrinha voltou a adormecer.

Aquilino Ribeiro, Arca de Noé, III Classe



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

CARTA À BRANCA DE NEVE

   Minha querida amiga:
   Espero que possas ler esta breve carta de amor longe dos teus sete anões-guardiões, que eu sei que passam a pente-fino tudo o que te chega às mãos, com receio que seja uma maçã envenenada ou coisa parecida, destinada a causar-te sofrimentos.
   É pouco e é muito, ao mesmo tempo, aquilo que tenho para dizer-te. Tu foste a minha princesa, a primeira clareira de luz no meio das minhas noites sem sono. Por tua causa deixei de gostar de madrastas, de príncipes conquistadores, de maçãs envenenadas, de bruxas e de anões vigilantes.
   Eu queria-te só para mim, elegante, branca, meiga, vistosa, inteligente e sempre com um sorriso a disfarçar a tristeza do rosto. [...]
   Tive de me resignar. Não se pode ter uma princesa branca como a neve só para nós. Paciência. Continuo hoje a ver-te rodeada pelos teus pequenos guardiões, à espera de um príncipe galante que tarda em chegar.
   Até sempre, Branca de Neve. Como posso eu esquecer-te?

José Jorge Letria, Cartas aos Heróis,
Ed. Âmbar

sábado, 13 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016


CATIVAR


   Foi então que apareceu a raposa:
   - Bom dia! - disse a raposa.
   - Bom dia! - respondeu o principezinho com delicadeza. Mas ao voltar-se não viu ninguém.
   Estou aqui - disse a voz - debaixo da macieira...
   - Quem és tu? - disse o principezinho. - És bem bonita...
   - Sou uma raposa - disse a raposa.
   - Anda brincar comigo - propôs-lhe o principezinho. - Estou tão triste...
   - Não posso brincar contigo - disse a raposa. - Ainda ninguém me cativou.
   - Ah! perdão - disse o principezinho.
   Mas, depois de ter refletido, acrescentou:
   - Que significa "cativar"?
   - Tu não deves ser daqui - disse a raposa. - Que procuras?
   - Procuro os homens - disse o principezinho. - Que significa "cativar"?
   - Os homens - disse a raposa - têm espingardas e caçam. É uma maçada! Também criam galinhas. É o único interesse que lhe acho. Andas à procura de galinha?
   - Não - disse o principezinho - ando à procura de amigos. Que significa "cativar"?
   - É uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - Significa "criar laços..."
   - Criar laços?
   - Isso mesmo - disse a raposa. - Para mim, não passas, por enquanto, de um rapazinho tudo igual a cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu não precisas de mim. Para ti, não passo de uma raposa igual a cem mil raposas. Mas, se me cativares, precisaremos um do outro. Serás para mim único no mundo. Serei única no mundo para ti...
   - Começo a compreender - disse o principezinho. - Existe uma flor... creio que ela me cativou.
   - É possível - disse a raposa. - Vê-se de tudo à superfície da Terra...
   - Oh! não é da Terra - disse o principezinho.
   A raposa mostrou-se muito intrigada.
   - Noutro planeta?
   - Sim.
   - Há caçadores nesse planeta?
   - Não.
   - Isso tem muito interesse. E galinhas?
   - Não.
   - A perfeição não existe - suspirou a raposa.
   Mas voltou à mesma ideia:
   - Levo uma vida monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas são iguais e todos os homens são iguais. Por isso me aborreço um pouco. Mas, se tu me cativares, será como se o Sol iluminasse a minha vida. Distinguirei, de todos os passos, um novo ruído de passos. os outros passos fazem-me esconder debaixo da terra. Os teus hão de atrair-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Vês lá adiante os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. os campos de trigo não me dizem nada. E é triste. Mas os teus cabelos são cor de oiro. Por isso, quando me tiveres cativado, vai ser maravilhoso. Como o trigo é doirado, fará lembrar-me de ti. E hei de amar o barulho do vento através do trigo...
   A raposa calou-se e olhou por muito tempo para o principezinho.
   - Cativa-me, por favor - disse ela.
   - Tenho muito gosto - respondeu o principezinho -, mas falta-me tempo. Preciso de descobrir amigos e conhecer muitas coisas.
   - Só se conhecem as coisas que se cativam - disse a raposa. - Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me.
   - Como é que hei de fazer? - disse o principezinho.
   - Tens de ter muita paciência - respondeu a raposa. - primeiro, sentas-te um pouco afastado de mim, assim na relva. Eu olho para ti pelo rabinho do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto...




Antoine de Saint-ExupéryO Principezinho



terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O ÚLTIMO ANDAR

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.

Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo

Resultado de imagem para ultimo andar

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

DOM TRISTÃO DANÇARINO

   De manhã, quando Dom Tristão dormita, sente que alguém lhe vem aconchegar a manta. Abre os olhos e vê Rodrigo, que o afaga.
   - Estás melhor, Dom Tristão?
   O urso não pode falar; sente-se estalar de tristeza.
   E Rodrigo faz uma voz alegre:
   - Não te rales, Dom Tristão, isso passa! Ainda temos uns cobres... Não te aflijas!...
   Um raio de sol muito vivo entra por debaixo do arco da ponte. Parece que as forças voltaram ao velho urso. Dom Tristão sacode a manta, põe-se de pé.
   - Não há hoje feira na vila, Rodrigo?
   - Há, sim...
   - Pois tu hás de tocar e eu hei de dançar.
   - Tu? Assim doente? Tem juízo!
   - Sinto-me bom, queres ver?
   E Dom Tristão põe-se de pé e começa a saltitar o seu velho bailado.
   - Mas sentes-te com forças? Já não tens dores?
   - Estou bom, Rodrigo, estou bom! Vamos à feira!
   Lá vão pela estrada fora, Rodrigo e Dom Tristão; o urso bem quer erguer a cabeça, onde pousa o velho chapéu de plumas... faltam-lhe as forças e coxeia. Chegam à feira. O largo está cheio de gente; todos vieram vender e comprar coisas. Há louças de barro sarapintadas, pirâmides de maçãs lustrosas, rebanhos de carneiros assustados e grandes balcões de jóias falsas, apitos e bonecos...
   Todos gritam, e a música do carrossel grita mais do que todos.
   - Venham ver o urso que baila, a maior maravilha!...
   Junta-se gente à roda de Rodrigo. Rodrigo é novo e alegre, tem um cravo rubro na orelha, dentes brancos a brilhar e uma viola e um pandeiro.
   Dom Tristão endireita-se. Chama a si as forças antigas. Pensa em todas as coisas boas de outro tempo, para ganhar coragem. Depois levanta as patas dianteiras e começa a pular. Mas as suas pobres pernas enfraquecidas não aguentam, cambaleia, para.
   - Não posso, não posso!
   E têm de deixar a feira, entre apupos e assobios.

Esther de Lemos, A Menina de Porcelana e o General de Ferro