domingo, 29 de janeiro de 2017

QUANDO AS CASAS ESTAVAM VIVAS

Nessa noite, uma casa, de repente, ergueu-se do chão e partiu flutuando,
Estava escuro e diz-se que um sibilo violento se ouviu, enquanto voava.
A casa ainda não chegara ao destino, quando as pessoas que nela moravam
lhe pediram que parasse. A casa parou
Não havia óleo de baleia, quando pararam. Então apanharam neve fresca
acabada de cair e puseram-na nas lâmpadas e ela ardeu.
Tinham chegado a uma aldeia. Um homem veio até à casa e disse:
Vejam, estão a queimar neve nas lâmpadas. A neve pode arder.
Mas logo que pronunciou estas palavras, as lâmpadas apagaram-se.

Ártico, Esquimós, Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro


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domingo, 8 de janeiro de 2017

SENHOR DONO DO MUNDO

   - Senhor Dono do Mundo não deixes que partam as asas dos gaviões, nem deixes que os meninos tenham febre, nem que os velhos morram com os dedos encarquilhados de frio. Não deixes que haja caçadores, nem espingardas, nem cartuchos, que é para todos os bichos do mundo poderem viver no mato e terem crias e correrem em cima das sebes, no meio dos silvados e das carapinheiras. Não deixes os peixes morrerem à sede no Verão quando os pegos têm falta de água e ajuda os passarinhos gagos a cantar como os seus irmãos de criação. Ajuda as rãs a saltar tão alto que consigam conversar com as borboletas e ajuda as borboletas a ter força para acompanhar as andorinhas. Ajuda as pessoas que se perdem nos lamaçais a encontrar chão seguro e ajuda também as raparigas pobres a casarem com os moços pobres de quem gostam para não serem obrigadas a casar com os ricos de que não gostam. Ajuda todas as pessoas a gostarem de todas as pessoas e a gostarem dos bichos e a gostarem das aves e a gostarem dos peixes e a gostarem das ervas e a gostarem do vento e a gostarem do escuro e a gostarem do sol e a gostarem da chuva. Ajuda...

Eduardo Olímpio, António dos Olhos Tristes

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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O RATO E O ANJO

Há um rato para cada português.
Dos jornais

Anjo guardum para cada um.
Da província

Um rato e um anjo da guarda
para cada.

Anjo defende  o ato
mau,
a fazer ou a sofrer.

Rato celebra contrato?
Qual?

Rato rói,
até na orelha.
Anjo dói
de outra maneira.

Mas eis que, nestes enredos,
há dois a mais, um a menos.

Cai ao anjo a pena,
ao rato o pelame.
Um regressa ao seu enxame,
o outro à sua caverna.

E o português, desanjado,
já se vê desratizado.
Chora.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

1924-1986

Escritor português

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