sábado, 31 de dezembro de 2016

FÁBULA ou HISTÓRIA

Um dia, magro e sentindo um real desfastio,
Um macaco com a pele de um tigre se vestiu.
O tigre fora malvado, ele tornou-se atroz.
Ele tinha assumido o direito a ser feroz.
Arreganhava os dentes, gritando: eu serei
O herói dos matagais, da noite o temível rei!
Como malfeitor dos bosques, emboscado nos espinhos,
De horror, morte e rapinas, escureceu os caminhos,
Degolou os viajantes e devastou a floresta,
Fez tudo o que faz aquela pele funesta.
Vivia no seu antro, no meio da voragem.
Todos, vendo-lhe a pele, criam na personagem.
Gritava e rugia como as feras danadas:
Olhem, a minha caverna está cheia de ossadas;
Olhem para mim, sou um tigre! Tudo freme!
Temiam-no os animais, fugindo com grandes passos.
Um domador apareceu e tomando-o nos braços,
Rasgou-lhe a pele, como se rasga um farrapo,
E, pondo a nu o herói, disse: Não passas de um macaco!

Victor Hugo, Poemas

1802-1885

Escritor francês

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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A BAILARINA RUSSA

   Uma bailarina russa que tinha setenta anos e ensinava dança pelas escolas, foi seguida por um jovem, seduzido por sua figura esguia e arrebatadora.
   Para não ser alcançada, correu até casa e,ofegante, fechou-se no apartamento. A filha jovem interrogou-a sobre o sucedido.
   «Uma coisa extraordinária», responde a velha mãe. «Um rapaz seguiu-me e eu não quis que descobrisse meu rosto para não o desiludir com a minha idade. Vê pela janela se ele ainda está no passeio.»
   A filha foi à janela e, sobre a estrada, depara com um velho que olhava para cima.

Tonino Guerra, Histórias para Uma Noite de Calmaria

1920-2012 - Autor italiano

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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

ESTE ANO

Este ano cresceu de joelhos
a noite conservou as quatro luas
as crianças têm seus cabelos
seus gritos de paz intransmissíveis

Luiza Neto Jorge

1939-1989

Poetisa portuguesa

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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

FALA!

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p'la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

1924-1986

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

DE UM BESTIÁRIO


FORMIGA

Com a formiga viajei,
Quase de braço dado...

Senhora formiga
É bom que se diga
Que tu és má:

Vais à alma, a pé,
p'ra roubar até
O que lá não há...


CISNE

Na água lenta onde insinua
O pescoço, espasmo constante,
Pura e hostil desliza a sua
Branca forma perturbante.


ANDORINHA

Despenteei-me já, mercê duma andorinha
Que na cabeça me passava p'la tardinha.


GRILO

O grilo que lutava ainda,
Adormeceu.

Coitado,
Já não podia aguentar o peso da noite.


Alexandre O'Neill, Obras Completas

1924-1986

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sábado, 12 de novembro de 2016

A GALINHA 
DOS OVOS DE OURO

   Naqueles tempos antigos em que as fadas, as bruxas e os duendes andavam pelo mundo, havia numa cidade um casal com a fama de nunca estar satisfeito com o que tinha.
   Quando fazia bom tempo, o marido e a mulher queixavam-se do calor e quando fazia frio lamentavam-se amargamente de terem de viver num país como aquele, onde nem sequer se podia pôr o nariz fora da porta de casa. Se o tempo era seco, queixavam-se do pó; e se chovia, praguejavam contra a água e as nuvens.
   Para além do mais, eram muito avarentos. Na cidade dizia-se que, por uma moeda de ouro, eram capazes de enforcar todos os parentes e amigos e inclusivamente de se matarem um ao outro.
   Para provar que tudo o que se dizia deles era verdade, um duende brincalhão e trocista, que tinha a sua casa dentro do tronco de uma árvore, apareceu ao marido numa tarde em que este tinha ido buscar lenha ao bosque.
   - Olá, bom homem - disse-lhe, do tronco da sua árvore - Pareces cansado e triste. A tua vida é dura? Estás doente? Não tens o que comer?
   O homem olhou assustado para o duende e desatou a tremer de medo.
   - Não, não estou doente - conseguiu dizer por fim o homem - Também não tenho fome, nem se passa nada de mal comigo. Mas estou triste porque a vida é sempre triste, porque a minha mulher e eu somos pobres e por muitas outras coisas que trago guardadas no coração e que não saberia explicar-te muito bem.
   - Se não estás doente e não tens fome, não és pobre - disse-lhe o duende.
   - Sou sim - replicou o homem - Quem não tem ouro é pobre e eu não tenho ouro.
   O duende não conseguiu evitar uma gargalhada.
   - Não, homem, não - disse por fim - Estás enganado. Eu posso ter todo o ouro do mundo que quiser, pois sou o duende do bosque e sei onde estão escondidos todos os tesouros. Mas a mim o ouro não faz falta nenhuma. Preciso da luz do Sol, de comida e desta casa forrada com suaves penas de aves e peles de esquilo; e, sobretudo, preciso de estar saudável e forte, de poder caminhar e desfrutar de todas as coisas que me rodeiam... Como tenho tudo isso, sou rico e feliz.
   - Não, não - insistiu o homem. Ser pobre significa não ter ouro e eu não tenho ouro. Por isso estou sempre triste e não sou capaz de ser feliz.
   - Fazes-me pena, amigo! - disse-lhe o duende - Vou oferecer-te uma galinha que todos os dias porá um ovo de ouro. Tu só tens de esperar e recolher diariamente o ovo. Assim, terás o ouro que tanto desejas e serás muito feliz para sempre...
   E o duende retirou do tronco da árvore uma galinha entregou-a ao homem. Este colocou-a debaixo do braço e desatou a correr todo contente em direção à cidade, enquanto que o duende ria às gargalhadas.
   Marido e mlher ficaram toda a tarde e toda a noite à espera que a galinha pusesse o ovo. Ao amanhecer, o animal começou a cacarejar e, pouco tempo depois, apareceu debaixo dele um bonito e reluzente ovo de ouro.
   - Que aborrecimento! - disse a mulher - Temos de esperar até amanhã para poder ter outro igual...
   - Sim, que azar! - acrescentou o marido - Terá de passar muito tempo, até que a galinha ponha ovos suficientes para sermos os mais ricos da cidade. Por isso o duende se ria tanto qando ma ofereceu.
   - Eu sempre ouvi dizer - disse a mulher - que as galinhas têm dentro delas todos os ovos que põem, um a um. Porque não a matamos e retiramos todos de uma vez?
   - E se o duende se aborrece?
   - O duende está no bosque e nunca saberá - respondeu ela.
   E, sem esperar mais, agarraram na pobre galinha, que cacarejava desesperadamente, e degolaram-na.
   Mas dentro dela não havia mais nenhum ovo e, marido e mulher, começaram a puxar os cabelos, a chorara e a gritar, lamentando-se da sua sorte.
   Empoleirado sobre um armário,o duende do bosque ria-se, pensando que a felicidade ou infelicidade não está no ouro, mas no coração de cada pessoa.




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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A CANÇÃO DA PRIMAVERA

A primavera canta
ouvi a sua voz
o rouxinol espanta-se
de ouvi-la como nós

A primavera canta
vais ouvi-la também
quando um pássaro canta
não se ouve mais ninguém

A primavera é ave
é ela o rouxinol
há pássaro que lave
melhor a luz do sol?

Gastão Cruz, Rua de Portugal

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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

EPITÁFIOS


De um cão

Aos ladrões e ladrava, calava-me aos amantes,
E assim servia dono e dona, em duas frentes.


De um cozinheiro

Como o mundo em geral anda sempre às avessas!
Aqui um cozinheiro seu descanso encontrou,
Que em vida muitos e bons pratos cozinhou.
Comem-no agora os vermes - cru e sem travessas!


Martin Opitz, O Cavalo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão

1597 - 1639

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domingo, 11 de setembro de 2016

A TORRE DE BABEL

   Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras. Emigrando do Oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Sennaar e nela se fixaram. Disseram uns para os outros: "Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo." Utilizaram o tijolo em vez de pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. Depois disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre cuja extremidade atinja os céus. Assim, tornar-nos-emos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a face da Terra." O Senhor, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os filhos dos homens estavam a edificar. E o Senhor disse: "Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não se compreendam uns aos outros."
   E o Senhor dispersou-os dali para toda a face da Terra, e suspenderam a construção da cidade. Por isso lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o Senhor os dispersou por toda a Terra.

Génesis 11, 1-9

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terça-feira, 16 de agosto de 2016

AS VOZES

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O PRIMEIRO DIA DE AULAS




   Não me lembro do primeiro dia de aulas, mas calculo que tenha havido recreio, no grande jardim do colégio cheio de arvoredo (...), e talvez tenha havido uma ou outra lição. Mas lembro-me do primeiro dia de aulas do ano seguinte, pois quem presidia a aula nessa aula de chegada era Madre Cecília, que foi também a nossa professora desde a primeira classe até à quarta classe.
     Era uma ótima professora e ria muito connosco e, às vezes, no meio da aula, quando estávamos na primeira classe, voava uma caixa recheada de rebuçados e chocolates que se abria no meio da sala. Dizia que era a “Caixinha do Menino Jesus”. Ela tinha coisas de criança e por isso se entendia bem com as crianças. Às vezes tomava um ar muito severo e ralhava com uma cara muito zangada, mas daí a um bocado estava-se a rir. Muitas vezes tinha um ar tão infantil que me parecia mais infantil que eu.
     Durante o primeiro verão de férias, um dia perguntaram-me como era o meu colégio e eu comecei a contar histórias da Madre Cecília e a imitá-la, o que fazia as crianças e mesmo as pessoas crescidas rirem-se muito.
     Depois das primeiras férias, quando em outubro voltei para o colégio, mal entrei na aula vi a cara da Madre Cecília. Uma cara redonda e sorridente como a cara dos anões da floresta e, mal ela me viu, abriu um sorriso ainda maior e, quando lhe fui falar, ela, com muitas exclamações e saudações, abriu um grande abraço e perguntou pelo meu verão e disse:
     – Sophia, sente -se ali para eu ver bem a sua carinha, de que já tinha tantas saudades.
     Fui-me sentar em frente dela e senti-me comida de vergonha e remorso porque durante todo o verão tinha estado a fazer troça dela. Não sei com que palavras pensei este problema, mas senti que não podia encarar a Madre Cecília enquanto me sentisse um traidor que pelas costas tinha feito troça dela. Compreendi que, de qualquer forma, tinha que me libertar desse peso insuportável. Acabei por me levantar, fui à carteira dela e disse:
     – Madre Cecília, quero dizer-lhe uma coisa. Durante as férias imitei-a, fiz troça de si. E as pessoas riram de si.
 Por uns instantes o olhar dela olhou-me fixo, depois riu e disse:
     – Sophia, então imite-me para eu me rir também.
      Meia tartamuda, procurei imitá-la em frente dela, o que me custou bastante. Quando acabei, ela riu-se imenso, deu-me um abraço, um beijo, e disse-me:
     – Agora vá estudar.
 Nesse dia aprendi que dizer a verdade é o melhor caminho.

                                                                                      Sophia de Mello Breyner Andresen, in revista Cais – Associação dos Sem-Abrigo,
                                                                                                    outubro de 1998 (excerto de um depoimento sobre o primeiro dia de aulas


sexta-feira, 3 de junho de 2016

 UMA PRINCESA ORIGINAL

   Era uma vez um rei que, como os reis de antigamente, tinha o hábito de escolher os noivos para as suas filhas.
   Assim, quando a princesa Preciosa fez treze anos, reuniu na sala do trono os pretendentes e anunciou:
   - Dou a mão da minha filha a quem mais depressa consiga encher este salão.
   - Eu encho-o rapidamente - disse o primeiro. - Despejo aqui todos os fardos de palha da cavalariça que pouco pesam e perto estão.
   - Pois eu faço o serviço mais depressa e melhor - disse o segundo. - Basta-me abrir as torneiras e, sem carregamentos, encho a sala de água.
   - Pois eu - disse o terceiro - encho-o já, sem precisar de ir buscar seja o que for.
   Então, para espanto dos presentes, pôs-se a acender as velas do candelabro, até a luz alcançar todos os recantos.
   Ficou o rei encantado com o jovem, chamando logo a princesa para lhe dar a sua mão.
   Porém, a princesa não estava interessada em dar a mão ou o pé a quem quer que fosse. Queria brincar, estudar, correr mundo.
   - Meu pai - replicou ela -, o senhor prometeu que daria a minha mão a quem ganhasse este concurso. Também quero experimentar.
   Nesse mesmo instante, pegou na guitarra. Num instante, a mais bela música encheu a sala, espalhou-se pelos corredores e até na rua as pessoas paravam para a ouvir tocar.
   Entretanto, o rei, embaraçado mas orgulhoso da filha que tinha, concordou:
   - Ganhaste!
   Imediatamente, a princesa concluiu:
    - Portanto, a mão é minha e só minha. Dou-a a quem me apetecer, no dia em que eu quiser.
    Finalmente, os velhos daquela corte ficaram a adivinhar:
   - Que mania da independência! Como serão as raparigas no século vinte?

Luísa Ducla Soares, Histórias Nunca Lidas




  

segunda-feira, 9 de maio de 2016

UM NOVO INTERESSE

   Adquiri um novo interesse na escola. Nada tinha a ver com o estudo mas refletiu-se nele.
   Desde o começo das aulas eu havia reparado na Júlia. Não que ela fosse a menina mais bonita da aula. Olhando bem era até um bocadinho gorda para além da conta. Mas, quando sorria, a Júlia como que brilhava. O sorriso era grande, abria-se no rosto, tomava-o todo. Eu achava que nunca vira ninguém sorrir assim. Olhava a menina de longe, desejando aproximar-me, ser amigo dela, mas sem coragem. Um dia ela procurou-me para perguntar qualquer coisa. E sorriu só para mim. Desde então passei a desejar vê-la sorrir e a procurar agradar-lhe com palavras e pequenos presentes. Guardava para a Júlia a fruta mais bonita, uma flor, um desenho e até um lápis grande, diferente de todos os que a avó Lídia me dera. Achava sempre alguma coisa para perguntar à menina e tinha sempre uma resposta comprida para as perguntas dela. A Júlia aceitava os meus presentes e às vezes retribuía-os. Começava a pensar que tinha arranjado uma amiga. Não lhe falava de tudo, procurava mostrar-lhe o meu lado melhor. Não podia competir com os outros nos desportos. Então, para ser notado pela nova amiga, estudei mais, esmerei-me nos trabalhos de casa, li histórias para ter que lhe contar e mostrar.
   E certa vez alguém perguntou se éramos namorados. Tive um susto alegre e fiquei a interrogar-me. Namorados? Será que éramos? Teria eu encontrado uma namorada? Quem sabe se era verdade? Mas não me decidia a perguntar à Júlia. Talvez ela também não soubesse se éramos ou não namorados e talvez se zangasse comigo.
   Achei melhor guardar a dúvida em segredo.

 Ilsa Lima Monteiro, Abram a Porta ao Meu Pai,
Ed. Caminho

terça-feira, 3 de maio de 2016

PARÁFRASE

Este poema começa por te comparar
com as constelações,

e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica

é uma ciência infeliz.
Em seguida, duas metáforas

e dos contrastes
petrarquistas que existem

no refúgio triste da imaginação.

A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos

de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza

do teu silêncio.

Uma hipérbole, finalmente, 
diz que me fazes muita falta.

Pedro Mexia in 366 poemas que falam de amor,
Quetzal

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O CASTELO DE D. BRANCA

   Em Currelos, no concelho de Carregal do Sal, há um antigo castelo quadrangular com janelas ogivais, ao qual o povo chama Castelo de D. Branca.
   Conta a lenda que esta D. Branca se chamava, de seu nome completo, D. Branca de Vilhena. Era fidalga e vivia com seu marido no castelo das janelas ogivais até ao dia em que pariu um par de gémeos.
   Não podendo acreditar que eram ambos filhos do mesmo pai e, por outro lado, tendo consciência absoluta de não ter conhecido outro homem, D. Branca entrou em pânico. Que diria de si aquele marido tão amigo? Certamente ia escorraçá-la de casa mais os filhos, ou mandá-la expor no pelourinho para vergonha pública! Não, antes mandar matar uma das crianças e viver em paz o resto da vida!
   Mandou chamar um pajem de sua muita confiança, entregou-lhe o menino que nascera em segundo lugar e ordenou que o fizessem desaparecer para todo o sempre. E, como prova de que a sua ordem fora executada, disse ao rapaz que lhe trouxesse a língua da criança.
   O pajem lá partiu para cumprir a sua ordem, sentindo um nó na garganta e o estômago revolto com a crueldade. Seguia Mondego abaixo quando encontrou o seu senhor e decidiu contar-lhe tudo.
   O fidalgo mandou-o arrancar a língua a um cão e levá-la a D. Branca, para que descansasse. Depois pegou no menino e foi entregá-lo a um moleiro, muito em segredo, para que o criassem sem que nada lhe faltasse, trazendo-o sempre vestido como andava o irmão.
   Passou-se o tempo, e um dia, pela festa do Espírito Santo, o menino do moleiro veio à romaria. O fidalgo, D. Branca e a outra criança saíram também do seu castelo, para irem à festa. No caminho encontraram-se todos e o fidalgo, apontando a criança que o moleiro trazia em cima do burro, vestida como o seu filho, disse a D. Branca:
   - Ora aqui está um menino que se parece com o nosso! Era digno de viver com ele e de ser nosso filho!
   D. Branca empalideceu e não disse palavra. Dentro de si estalaram todas as certezas laboriosamente construídas ao longo daqueles anos de remorsos e saudades. Percebendo que o marido sabia de tudo, pegou no menino, levou-o para casa e sentou-o à mesa, onde pela primeira vez comeu com a sua família. Deitou-o depois na cama com o irmão e aconchegou-lhes a roupa.
    Era noite fechada quando D. Branca se aproximou como que distraída de uma das janelas do castelo. Só quando o fidalgo, sentado de costas para as janelas, em frente da lareira, ficou sem resposta a uma sua pergunta, se apercebeu de que D. Branca desaparecera.
   Lá em baixo brilhava ao luar o seu corpo, de costas para a vida.
   Dali por diante, todas as noites andava pela margem do Mondego o fantasma branco e brilhante de D. Branca, penando no local em que mandara afogar o seu filho. Diz-se que a acompanhava o Diabo, branco e brilhante como ela, em forma de mastim(1).

Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas,
Amigos do Livro Editores

(1) cão de guarda de grande porte.


 

sábado, 9 de abril de 2016

O CARACOL

   O caracol que desejava conhecer os motivos da lentidão também não possuía um nome (tal como os restantes caracóis) e isso causava-lhe uma grande preocupação. Parecia-lhe injusto não ter um nome, e quando algum dos caracóis mais velhos lhe perguntava porque o queria, igualmente sem erguer a voz, respondia:
   - Porque o calicanto se chama assim, calicanto, e por isso quando chove, por exemplo, dizemos que nos vamos refugiar sob as folhas do calicanto. Também o saboroso dente-de-leão se chama assim, dente-de-leão, e, por isso, quando dizemos que vamos comer umas folhas de dente-de-leão, já não comemos urtigas por engano.
   Mas os argumentos do caracol que desejava conhecer os motivos da lentidão não despertavam grande interesse nos outros caracóis. Entre eles murmuravam que as coisas estavam bem assim, que bastava saber o nome do calicanto, do dente-de-leão, do esquilo e da gralha, do prado a que chamavam País do Dente-de-Leão, e que não  precisavam de mais nada para serem felizes sendo como eram, caracóis lentos e silenciosos, decididos a conservar a humidade dos seus corpos e a engordar para suportarem o longo inverno.

Luís Sepúlveda, história de um caracol que descobriu
 a importância da lentidão, Porto Editora


quarta-feira, 16 de março de 2016

POEMA DO CORAÇÃO

Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados, irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos."

Mas o meu coração é como o dos compêndios,
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o  coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e que ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?

António Gedeão, Poesias Completas


sábado, 27 de fevereiro de 2016

MESTRE GRILO CANTAVA 
E A ABÓBORA DORMIA

   Era uma abóbora menina, muito redondinha, que saíra de uma flor tão grande e tão linda que de longe parecia um cálice de oiro, o cálice por onde os senhores bispos costumavam dizer missa, e pelo brilho estrela caída do céu. Atraídas pela cor viva e o perfume, que era brando mas suave, zumbiam-lhe as abelhas em volta e um grilinho viera com a caixa de música às costas acolher-se à sua sombra e ali fizera a lura. Perto, dentro de seus buraquinhos, viviam dois ralos, e uma cigarra passava a maior parte do tempo empoleirada numa das folhas da aboboreira a cantar.
   Ora, com os dias, a flor murchara e no seu pedúnculo começou a crescer a abóbora redondinha. Era na entrada do verão e à força de comer do solo, e beber do regadio, um pouco também entorpecida pelo calor, levava a vida a dormir. Crescia e dormia, dormia e crescia. Passavam por cima dela as nuvens ligeiras cmo caravelas e não as via; cantavam as rolas e o cuco, deixá-los cantar: batiam os manguais nas eiras, chiavam os carros da lavoura e a tudo permanecia indiferente. Cresceu, cresceu, e já espigadota, certa noite mais quente, estranho ruído acordou-a. Que fanfarra era aquela? Pôs-se à escuta. As rãs do charco clamavam;
   - Dai-nos sol! Dai-nos sol!
   Curioso, não pediam rei, pediam sol;
   - Dai-nos sol! Dai-nos sol!
   Os ralos e a cigarra acompanhavam;
   - Solzinho! Solzinho! Solzinho!
   O grilo arpejava;
   - E que rico, rico! Que rico, rico! Rico!
   E os sapos lá do fundo do campo em coro trauteavam;
   - Sol, sol, sol! Sol, sol, sol, canta rouxinol! Sol, sol sol!!!
   Que tinham aqueles doidos para fazerem tal banzé em vez de aproveitar o tempo para dormir?! O grilo, que lhe ficava mais perto, foi quem mais a intrigou. Muito negrinho, todo entregue à inspiração, lá ia tocando os pratos, que é como quem diz movendo as asas de ébano com risquinhas de oiro, dum lado para o outro. Que diabo de bicharoco tão patusco e ridículo que não deixava dormir à gente o soninho descansado! E não se contendo mais, gritou-lhe;
   - Eh lá, seu casaca! Você não pode calar a caixa?
   Com tal brequefesta como hei de eu dormir?!
   - Ora a palerma! - retorquiu o grilo, escandalizado. - Não querem lá ver, tem-se na conta de menina e é tão mona. Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e claridade.
   - Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sono.
   - Outro ofício!... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.
   E chocando as asas tornou à cantiguinha!
   - Sol rico! Rico, rico! Rico...
   E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras, respondiam pela várzea fora:
   - Sol, sol, sol! Sol...
   E embalada pela serenata da noite a abobrinha voltou a adormecer.

Aquilino Ribeiro, Arca de Noé, III Classe



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

CARTA À BRANCA DE NEVE

   Minha querida amiga:
   Espero que possas ler esta breve carta de amor longe dos teus sete anões-guardiões, que eu sei que passam a pente-fino tudo o que te chega às mãos, com receio que seja uma maçã envenenada ou coisa parecida, destinada a causar-te sofrimentos.
   É pouco e é muito, ao mesmo tempo, aquilo que tenho para dizer-te. Tu foste a minha princesa, a primeira clareira de luz no meio das minhas noites sem sono. Por tua causa deixei de gostar de madrastas, de príncipes conquistadores, de maçãs envenenadas, de bruxas e de anões vigilantes.
   Eu queria-te só para mim, elegante, branca, meiga, vistosa, inteligente e sempre com um sorriso a disfarçar a tristeza do rosto. [...]
   Tive de me resignar. Não se pode ter uma princesa branca como a neve só para nós. Paciência. Continuo hoje a ver-te rodeada pelos teus pequenos guardiões, à espera de um príncipe galante que tarda em chegar.
   Até sempre, Branca de Neve. Como posso eu esquecer-te?

José Jorge Letria, Cartas aos Heróis,
Ed. Âmbar

sábado, 13 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016


CATIVAR


   Foi então que apareceu a raposa:
   - Bom dia! - disse a raposa.
   - Bom dia! - respondeu o principezinho com delicadeza. Mas ao voltar-se não viu ninguém.
   Estou aqui - disse a voz - debaixo da macieira...
   - Quem és tu? - disse o principezinho. - És bem bonita...
   - Sou uma raposa - disse a raposa.
   - Anda brincar comigo - propôs-lhe o principezinho. - Estou tão triste...
   - Não posso brincar contigo - disse a raposa. - Ainda ninguém me cativou.
   - Ah! perdão - disse o principezinho.
   Mas, depois de ter refletido, acrescentou:
   - Que significa "cativar"?
   - Tu não deves ser daqui - disse a raposa. - Que procuras?
   - Procuro os homens - disse o principezinho. - Que significa "cativar"?
   - Os homens - disse a raposa - têm espingardas e caçam. É uma maçada! Também criam galinhas. É o único interesse que lhe acho. Andas à procura de galinha?
   - Não - disse o principezinho - ando à procura de amigos. Que significa "cativar"?
   - É uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - Significa "criar laços..."
   - Criar laços?
   - Isso mesmo - disse a raposa. - Para mim, não passas, por enquanto, de um rapazinho tudo igual a cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu não precisas de mim. Para ti, não passo de uma raposa igual a cem mil raposas. Mas, se me cativares, precisaremos um do outro. Serás para mim único no mundo. Serei única no mundo para ti...
   - Começo a compreender - disse o principezinho. - Existe uma flor... creio que ela me cativou.
   - É possível - disse a raposa. - Vê-se de tudo à superfície da Terra...
   - Oh! não é da Terra - disse o principezinho.
   A raposa mostrou-se muito intrigada.
   - Noutro planeta?
   - Sim.
   - Há caçadores nesse planeta?
   - Não.
   - Isso tem muito interesse. E galinhas?
   - Não.
   - A perfeição não existe - suspirou a raposa.
   Mas voltou à mesma ideia:
   - Levo uma vida monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas são iguais e todos os homens são iguais. Por isso me aborreço um pouco. Mas, se tu me cativares, será como se o Sol iluminasse a minha vida. Distinguirei, de todos os passos, um novo ruído de passos. os outros passos fazem-me esconder debaixo da terra. Os teus hão de atrair-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Vês lá adiante os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. os campos de trigo não me dizem nada. E é triste. Mas os teus cabelos são cor de oiro. Por isso, quando me tiveres cativado, vai ser maravilhoso. Como o trigo é doirado, fará lembrar-me de ti. E hei de amar o barulho do vento através do trigo...
   A raposa calou-se e olhou por muito tempo para o principezinho.
   - Cativa-me, por favor - disse ela.
   - Tenho muito gosto - respondeu o principezinho -, mas falta-me tempo. Preciso de descobrir amigos e conhecer muitas coisas.
   - Só se conhecem as coisas que se cativam - disse a raposa. - Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me.
   - Como é que hei de fazer? - disse o principezinho.
   - Tens de ter muita paciência - respondeu a raposa. - primeiro, sentas-te um pouco afastado de mim, assim na relva. Eu olho para ti pelo rabinho do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto...




Antoine de Saint-ExupéryO Principezinho



terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O ÚLTIMO ANDAR

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.

Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo

Resultado de imagem para ultimo andar

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

DOM TRISTÃO DANÇARINO

   De manhã, quando Dom Tristão dormita, sente que alguém lhe vem aconchegar a manta. Abre os olhos e vê Rodrigo, que o afaga.
   - Estás melhor, Dom Tristão?
   O urso não pode falar; sente-se estalar de tristeza.
   E Rodrigo faz uma voz alegre:
   - Não te rales, Dom Tristão, isso passa! Ainda temos uns cobres... Não te aflijas!...
   Um raio de sol muito vivo entra por debaixo do arco da ponte. Parece que as forças voltaram ao velho urso. Dom Tristão sacode a manta, põe-se de pé.
   - Não há hoje feira na vila, Rodrigo?
   - Há, sim...
   - Pois tu hás de tocar e eu hei de dançar.
   - Tu? Assim doente? Tem juízo!
   - Sinto-me bom, queres ver?
   E Dom Tristão põe-se de pé e começa a saltitar o seu velho bailado.
   - Mas sentes-te com forças? Já não tens dores?
   - Estou bom, Rodrigo, estou bom! Vamos à feira!
   Lá vão pela estrada fora, Rodrigo e Dom Tristão; o urso bem quer erguer a cabeça, onde pousa o velho chapéu de plumas... faltam-lhe as forças e coxeia. Chegam à feira. O largo está cheio de gente; todos vieram vender e comprar coisas. Há louças de barro sarapintadas, pirâmides de maçãs lustrosas, rebanhos de carneiros assustados e grandes balcões de jóias falsas, apitos e bonecos...
   Todos gritam, e a música do carrossel grita mais do que todos.
   - Venham ver o urso que baila, a maior maravilha!...
   Junta-se gente à roda de Rodrigo. Rodrigo é novo e alegre, tem um cravo rubro na orelha, dentes brancos a brilhar e uma viola e um pandeiro.
   Dom Tristão endireita-se. Chama a si as forças antigas. Pensa em todas as coisas boas de outro tempo, para ganhar coragem. Depois levanta as patas dianteiras e começa a pular. Mas as suas pobres pernas enfraquecidas não aguentam, cambaleia, para.
   - Não posso, não posso!
   E têm de deixar a feira, entre apupos e assobios.

Esther de Lemos, A Menina de Porcelana e o General de Ferro

 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

COLAR DE CAROLINA

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.

Cecília Meireles

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

SOL DE PAPEL

O menino tem o sol
seguro por um cordel.
A atmosfera mole
cheira a pimentos e mel.

O menino tem o sol
seguro por um cordel.
Ou é um sol de papel?
Ou é um sol de papel?

A tarde é um rouxinol
que canta nos olhos dele.
O menino tem o sol
seguro por um cordel.

Armindo Rodrigues, Verso Aqui, Verso Acolá

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

FALAM OS BAGOS DE TRIGO

   Metidos numa arca velha, desde que o António Seareiro os guardara para semente, os bagos de trigo tinham acabado por adormecer naquela escuridão de muitos meses, julgando talvez que estavam esquecidos e ali ficariam a apodrecer o resto da vida.
   Ignoravam, pois, que o Doirado, um boi amarelo todo paciência e poder, já lavrara com a charrua, no outono, a parte da leiva destinada à semeadura e que o António preparava a grade com que desfaria os torrões do alqueive, na esperança de uma boa colheita, tanto mais que já comprara um saco de adubo para revigorar a terra cansada.
   Só quem vivesse a apatia dorminhoca dos bagos resignados poderia entender depois o entusiasmo e a alegria que rebentaram na velha arca mal a Maria Rita lhe levantou a tampa e a luz do dia os sacudiu. Até o Serrano - vejam lá! -, um bago anafado e sempre resmungão, se pôs a saltitar de contentamento, como se percebesse, o maroto, o destino que lhe reservavam.
   E não se enganava, o espertalhão!

 Alves Redol, A Vida Mágica da Sementinha



terça-feira, 12 de janeiro de 2016


O GATO DAS BOTAS

   Era uma vez um moleiro muito pobre, que tinha três filhos. os dois mais velhos eram preguiçosos e o mais novo era muito trabalhador.
   Quando o moleiro morreu, só deixou como herança um moinho, um burrinho e um gato. O moinho ficou para o filho mais velho, o burrinho para o filho do meio e o gato para o filho mais novo. Este último ficou muito descontente com a parte que lhe coube da herança, mas o gato disse-lhe:
   - Meu querido amo, compra-me um par de botas e um saco e, em breve, te provarei que sou de mais utilidade que um moinho ou um asno.
   Assim, pois, o rapaz converteu todo o dinheiro que possuía num lindo par de botas e num saco para o seu gatinho. Este calçou as botas e, pondo o saco às costas, encaminhou-se para um sítio onde havia uma coelheira. Quando ali chegou, abriu o saco, meteu-lhe uma porção de farelo miúdo e deitou-se no chão fingindo-se morto.
   Excitado pelo cheiro do farelo, o coelho saiu do seu esconderijo e dirigiu-se para o saco. O gato apanhou-o logo e levou-o ao rei, dizendo-lhe:
   - Senhor, o nobre marquês de Carabás mandou que lhe entregasse este coelho. Guisado com cebolinhas será um prato delicioso.
   - Coelho?! - exclamou o rei. - Que bom! Gosto muito de coelho, mas o meu cozinheiro não consegue nunca apanhar nenhum. Diz ao teu amo que eu lhe mando os meus mais sinceros agradecimentos.
   No dia seguinte, o gatinho apanhou duas perdizes e levou-as ao rei como presente do marquês de Carabás.
   Durante um tempo, o gato continuou a levar ao palácio outros presentes, todos dizia serem da parte do marquês de Carabás.
   Um dia, o gato convidou o seu amo para tomar um banho no rio. Ao chegarem ao local o gato disse ao jovem:
   - De hoje em diante o seu nome será marquês de Carabás. Agora, por favor, tire a roupa e entre na água.
   O rapaz não entendia nada, mas como confiava no gato, atendeu o seu pedido.
   O gato tinha levado o rapaz a um local onde devia passar a carruagem real.
   Esperto, o gato ao ver uma carruagem a aproximar-se, começou a gritar:
   - Socorro! Socorro!
   - Que aconteceu? - perguntou o rei, descendo da carruagem.
   Os ladrões roubaram a roupa do nobre Marquês de Carabás! - disse o gato. O meu amo está dentro de água e ficará resfriado.
   O rei mandou imediatamente uns servos ao palácio; voltaram daí a pouco com  magnífico vestuário feito para o próprio rei, quando era jovem.
   O dono do gato vestiu-se e ficou tão bonito que a princesa, assim que o viu, se enamorou dele. O rei também ficou encantado e murmurou:
   - Eu era exatamente assim, nos meus tempos de moço.
   O rei convidou o falso marquês para subir para a sua carruagem.
   - Será que vossa majestade nos dá a honra de visitar o palácio do marquês de Carabás? - perguntou o gato, perante o olhar aflito do rapaz.
   O rei aceitou o convite e o gato foi à frente, para preparar uma receção ao rei e à princesa.
   O gato estava radiante com o êxito do seu plano; e, correndo à frente da carruagem, chegou a uns campos e disse aos lavradores:
   - O rei está a chegar; se não lhe disserem que todos estes campos pertencem ao marquês de Carabás, o rei mandará cortar-lhes a cabeça.
   De forma que, quando o rei perguntou de quem eram aquelas searas, os lavradores responderam-lhe:
   - Do muito nobre marquês de Carabás.
   - Que lindas propriedades tens tu! - elogiou o rei ao jovem.
   O moço sorriu perturbado, e o rei murmurou ao ouvido da filha:
   - Eu também era assim, nos meus tempos de moço.
   Mais adiante, o gato encontrou uns camponeses a ceifar trigo e fez-lhes a mesma ameaça:
   - Se não disserem que todo este trigo pertence ao marquês de Carabás, faço picadinho de vocês.
   Assim, quando chegou a carruagem real e o rei perguntou de quem era todo aquele trigo, responderam:
   - Do mui nobre marquês de Carabás.
   O rei ficou muito entusiasmado e disse ao rapaz:
   - Ó marquês! Tens muitas propriedades!
   O gato continuava a correr à frente da carruagem; atravessando um espesso bosque, chegou à porta de um magnífico palácio, no qual vivia um ogre malvado que era o verdadeiro dono dos campos semeados. O gatinho bateu à porta e disse ao ogre que a abriu:
   - Meu querido ogre, tenho ouvido por aí uma histórias a teu respeito. Diz-me lá: é certo que te podes transformar no que quiseres?
   - Certíssimo! - respondeu o ogre, e transformou-se num leão.
   - Isso não vale nada! - disse o gatinho. - Qualquer um pode inchar e aparecer maior do que realmente é. Toda a arte está em se tornar menor. poderias, por exemplo, transformar-te em rato?
   - É fácil! - respondeu o ogre, e transformou-se num rato.
   O gatinho deitou-lhe logo as unhas, comeu-o e desceu logo a abrir a porta, pois naquele momento chegava a carruagem real. E disse:
   - Bem vindo seja, senhor, ao palácio do marquês de Carabás.
   - Olá! - disse o rei.
   - Que formoso palácio tu tens! Peço-te a fineza de ajudar a princesa a descer da carruagem.
   O rapaz, timidamente, ofereceu o braço à princesa e o rei murmurou-lhe ao ouvido:
   - Eu também era assim tímido, nos meus tempos de moço.
   Entretanto, o gatinho meteu-se na cozinha e mandou preparar um esplêndido almoço, pondo na mesa os melhores vinhos que havia na adega; e, quando o rei, a princesa e o amo entraram na sala de jantar e se sentaram à mesa, tudo estava pronto.
   Depois do magnífico almoço, o rei voltou-se para o rapaz e disse-lhe:
   - Jovem, és tão tímido como eu era nos meus tempos de moço. Mas percebo que gostas muito da princesa, assim como ela gosta de ti. Por que não a pedes em casamento?
   Então, o moço pediu a mão da princesa, e o casamento foi celebrado com a maior pompa. O gato assistiu, calçando um novo par de botas com cordões encarnados e bordados a ouro e preciosos diamantes.
   E daí em diante, passaram a viver muito felizes. E se o gato, às vezes, ainda  corria atrás dos ratos, era apenas por divertimento; porque já não precisava de ratos para matar a fome...

Charles Perrault

CHARLES PERRAULT
Nasceu a 12 de janeiro de 1628 (faz amanhã 389 anos que nasceu) e faleceu em 1703.
Escritor e poeta francês do século XVII, que estabeleceu as bases para uma nova categoria literária: o conto de fadas.
Autor de contos conhecidos por miúdos e graúdos de todo o mundo: O Capuchinho Vermelho, O Gato das Botas, Barba Azul, O Pequeno Polegar, A Bela Adormecida, Cinderela...



sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O PASTOR

Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?

Vou àquela serra
buscar uma ovelha.

Porque vais sozinho
pastor, pastorinho?

Não tenho ninguém
que me queira bem!

Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.

Eugénio de Andrade, Aquela Nuvem e Outras

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

INÊS de CASTRO

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Luís de Camões, Os Lusíadas
(Canto III, estância 120)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

 A SEMENTINHA

   Impressionante, o cheiro da terra que comprimia o seu corpo de semente.
   (...)
   Não podia falar porque a terra quente, abafando tudo, transformava as suas palavras em silêncio. Pensou em outras sementes aprisionadas, sofrendo também a mesma angústia de humilde espera.
   Até que um dia, uma absoluta calma substituiu seus pequenos frémitos e uma espécie de sono paralisou-a; só foi despertada por um grande ruído. A terra estremecia de medo porque a natureza trovejava. Sentiu o baque da chuva sobre o solo e o cheiro gostoso do chão que estava sendo molhado. Depois... as gotas de chuva introduzindo-se, infiltrando-se até ao âmago da terra... Vinham cansadas da longa viagem que tinham feito do céu através do espaço zangado...
   A alma da sementinha despertou porque as gotas se aproximavam cada vez mais. Até que seu dorso foi arrepiado pela frialdade do líquido e uma voz clara falou:
   - Ei, menininha! Agora você pode libertar-se; agora você pode perfurar a terra e alcançar a liberdade.
   A muito custo ela abriu os olhos de semente e gaguejou:
   - Boa noite, senhora!
   A gota de água riu.
   - Não é noite, não, menininha. É dia!...
   - Como podia saber, se aqui sempre é tão escuro?...
   A chuva riu.
   A semente perguntou, amedrontada:
   - Como é que a senhora sabe de tudo?
   - Ora, meu bem, eu sou uma velha chuva cansada de ser chuva.
   - Para onde vai agora a senhora?
   - Agora? Vou, juntamente com as minhas irmãs, criar uma nascente que, com o correr dos anos, virará um grande rio. Durante muito tempo serei esse rio, até que um arco-íris me beba e me transforme de novo em chuva...

José Mauro de Vasconcelos, Rosinha, Minha Canoa