segunda-feira, 18 de julho de 2016

O PRIMEIRO DIA DE AULAS




   Não me lembro do primeiro dia de aulas, mas calculo que tenha havido recreio, no grande jardim do colégio cheio de arvoredo (...), e talvez tenha havido uma ou outra lição. Mas lembro-me do primeiro dia de aulas do ano seguinte, pois quem presidia a aula nessa aula de chegada era Madre Cecília, que foi também a nossa professora desde a primeira classe até à quarta classe.
     Era uma ótima professora e ria muito connosco e, às vezes, no meio da aula, quando estávamos na primeira classe, voava uma caixa recheada de rebuçados e chocolates que se abria no meio da sala. Dizia que era a “Caixinha do Menino Jesus”. Ela tinha coisas de criança e por isso se entendia bem com as crianças. Às vezes tomava um ar muito severo e ralhava com uma cara muito zangada, mas daí a um bocado estava-se a rir. Muitas vezes tinha um ar tão infantil que me parecia mais infantil que eu.
     Durante o primeiro verão de férias, um dia perguntaram-me como era o meu colégio e eu comecei a contar histórias da Madre Cecília e a imitá-la, o que fazia as crianças e mesmo as pessoas crescidas rirem-se muito.
     Depois das primeiras férias, quando em outubro voltei para o colégio, mal entrei na aula vi a cara da Madre Cecília. Uma cara redonda e sorridente como a cara dos anões da floresta e, mal ela me viu, abriu um sorriso ainda maior e, quando lhe fui falar, ela, com muitas exclamações e saudações, abriu um grande abraço e perguntou pelo meu verão e disse:
     – Sophia, sente -se ali para eu ver bem a sua carinha, de que já tinha tantas saudades.
     Fui-me sentar em frente dela e senti-me comida de vergonha e remorso porque durante todo o verão tinha estado a fazer troça dela. Não sei com que palavras pensei este problema, mas senti que não podia encarar a Madre Cecília enquanto me sentisse um traidor que pelas costas tinha feito troça dela. Compreendi que, de qualquer forma, tinha que me libertar desse peso insuportável. Acabei por me levantar, fui à carteira dela e disse:
     – Madre Cecília, quero dizer-lhe uma coisa. Durante as férias imitei-a, fiz troça de si. E as pessoas riram de si.
 Por uns instantes o olhar dela olhou-me fixo, depois riu e disse:
     – Sophia, então imite-me para eu me rir também.
      Meia tartamuda, procurei imitá-la em frente dela, o que me custou bastante. Quando acabei, ela riu-se imenso, deu-me um abraço, um beijo, e disse-me:
     – Agora vá estudar.
 Nesse dia aprendi que dizer a verdade é o melhor caminho.

                                                                                      Sophia de Mello Breyner Andresen, in revista Cais – Associação dos Sem-Abrigo,
                                                                                                    outubro de 1998 (excerto de um depoimento sobre o primeiro dia de aulas