sexta-feira, 30 de outubro de 2015

MENINAS E MENINOS

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de meninas e meninos
a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de cadáveres de meninos e meninas
que morreram a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos!
E então?

Fernando Sylvan (Timor), Primeiro Livro de Poesia



quinta-feira, 29 de outubro de 2015

AS MINAS

Nos meus sonhos de menina
havia sempre uma mina.

Uma mina, um tesouro,
com pedrinhas todas de ouro.

Uma mina de brilhantes,
turquesas e diamantes.

Uma mina, uma nascente
de água fresca, transparente.

Hoje ainda sou menina,
Mas já pisei uma mina.

Tenho o sonho em estilhaços:
Fiquei sem pernas, sem braços.

Luísa Ducla Soares, in Vinte e Cinco (CD), Bando dos Gambozinos


quarta-feira, 28 de outubro de 2015

DESCOBRI AOS 13 ANOS

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Precetor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
Gostar de fazer defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas.
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.

Manoel de Barros, Livro das Ignorãças,
Rio de Janeiro: Record, 2006

bugre - nome depreciativo dado pelos europeus aos indígenas;
ariticuns - anonas.

sábado, 24 de outubro de 2015

Exercícios para articulação e dicção

À boca de um beco
Na Bica do Belo
Um bravo cadêlo
berrava: báu, báu.

Um bêbado, um botas
De bolsa e rabicho,
Embirra c'o bicho,
Bateu-lhe co'um pau.

Foi grande a balbúrdia
A turba se ria,
O bruto bramia,
E o broma a bater!

Co'o pau sobre o pobre
E bumba e mais bumba
Parece um zabumba!
Bendito beber!

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

ÉS FELIZ?

12 de março

   A Vanessa chegou ao pé de mim e perguntou-me de chapa.
   - És feliz?
   Fiquei engasgada.
   - Sei lá se sou feliz...
   Realmente não sei. Acho que dantes, quando era pequena e ridícula, eu às vezes era totalmente feliz. Lembro-me de quando recebi a bicicleta com rodinhas de lado e obriguei o meu pai a levar-me logo para o Campo Grande. Como era feliz a pedalar, a sentir o vento na cara, a saber-me dona daquela máquina prodigiosa! Era tão feliz no Natal, a desembrulhar presentes, na praia a chapinhar na espuma...
   Hoje a felicidade é difícil de agarrar. Sonho com isto e aquilo tão intensamente que, quando acontece, se por acaso acontece, é felicidade em segunda mão, perdeu metade do sabor.
   - Tens tudo para ser feliz - dizem os meus pais - mas só refilas, embirras, irritas, nunca estás contente com nada.
   Encolho os ombros, não respondo a figuras de Museu.
   Olho para a televisão. Passa anúncios - gente feliz porque gasta lixívia, usa collants, lava os dentes. Feliz pela coca-cola, pelo papel higiénico, pelas batatas fritas, pelos inseticidas...
   O telefone toca.
   - Para quem há de ser? - diz a mãe. - É de mais, parece que os teus amigos não podem viver sem ti.
   - Talvez não possam - respondo eu, quase, quase, quase feliz.

Luísa Ducla Soares, Diário de Sofia & Cª.,
 Civilização Editora




terça-feira, 20 de outubro de 2015

A LAMENTÁVEL CATÁSTROFE DE D. INÊS DE CASTRO

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda os piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso refletindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.

Bocage, Antologia Poética,
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses

D. Pedro e Inês de Castro

domingo, 18 de outubro de 2015

ADIVINHAS
 
1

Tem orelhas de gato
e não é gato;
Focinho de gato
e não é gato;
Rabo de gato 
e não é gato.
O que é?
 
2
 
Qual é a fêmea afamada,
Bem ligeira e decicida,
Que até mesmo sendo macho
Será fêmea toda a vida?
 
3
 
Ando sempre a esconder-me,
Para que ninguém me veja;
Quem a morte me deseja
É que me dá de comer.
 
 
 
 

Soluções:
 1 - gata; 2 - a lebre (este nome feminino engloba macho e fêmea); 3 - o rato (só o homem lhe oferece comida, na ratoeira, ou veneno para o matar).

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia
Belo Horizonte: Edições Pindorama, 1930

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

MAR

Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Era um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheio de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!

Miguel Torga, Poesia Completa



sexta-feira, 9 de outubro de 2015

VENTO

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.

Carlos de Oliveira, in Trabalho Poético,
Livraria Sá da Costa Editora

A TROMBA DO ELEFANTE WAN-BO



   Há muito, muito tempo - talvez na época em que o Céu se separou da Terra -, o Mundo estava povoado de monstros fabulosos: dragões alados que cuspiam fogo; lagartos gigantescos; serpentes vorazes com várias cabeças...
   Estas incríveis criaturas aterrorizavam os outros animais da criação. Os herbívoros e carnívoros só conseguiam salvar a vida graças às suas manhas e agilidade. Alguns, como a família de Sanu, o macaco, escapavam a esses monstros porque a imensa floresta tropical tinha esconderijos maravilhosos.
   Não era esse o caso de Wan-Bo, o elefante. O infeliz Wan-Bo tinha dificuldade em se esconder atrás do capim gigante ou dos arbustos, quando um desses monstros o avistava. É certo que as suas poderosas presas obrigavam o inimigo a recuar... Mas, nesse tempo, Wan-Bo não tinha tromba! Não, Wan-Bo não tinha nada pendurado do nariz...
   Ora vamos saber como, um belo dia, obteve essa terrível arma que hoje todos lhe invejam.
   Estava-se na estação seca. Faltava a água. A caça rareava. As criaturas monstruosas chegavam a devorar-se umas às outras. Por uma noite quente, junto da lagoa seca, houve uma luta mortal entre uma gigantesca serpente e um dragão. O fragor do combate atingiu o coração da grande floresta. Durante três dias e três noites, com inaudita violência, afrontaram-se os dois colossos. Ao fim do terceiro dia,  o dragão, cujo corpo era uma enorme boca - ou melhor, uma autêntica caverna! - armada de milhares de dentes, cortou o corpo do adversário em vários pedaços, que devorou avidamente.
   Depois disso, dirigiu-se para a sua gruta, a fim de limpar os ferimentos envenenados que recebera durante a batalha.
   Mas, ao afastar-se, tinha-se esquecido de um pedaço da monstruosa serpente, o mais pequeno. Era a extremidade da cauda, com mais de dois metros, cinzenta como um ramo morto de uma árvore e onde a parte cortada tinha a aparência de uma almofada de carne rósea. E esse pedaço de carne torcia-se no meio da erva como se procurasse à sua volta os restos do corpo a que pertencera uns momentos antes. Um espetáculo tão triste como ridículo e que fazia rir Sanu, o macaco, instalado num ramo de imbondeiro.
   Foi então que apareceu Wan-Bo. Pastava, há horas e horas, o capim gigante, cobiçando as tenras ervinhas que verdejavam junto do chão mas que não podia alcançar por ser demasiado alto.
   E, de repente, quando uma das suas patas se preparava para esmagar o pedaço da serpente que se retorcia na erva, este estendeu-se de súbito e o lado cortado foi prender-se no nariz de Wan-Bo!
   O elefante, surpreendido, recuou, pensando ter sido atacado. Depois sacudiu-se e, com o auxílio das enormes orelhas, esfregou aquela "coisa" contra as hastes de bambu para se livrar dela. Em vão! A cauda da serpente prendera-se com muita força e nada a conseguiria afastar do nariz do elefante.
   Mas, com grande espanto de Wan-Bo, começou a falar. É verdade, começou a falar!
   - Oh, Wan-Bo - gemeu -, não te quero mal algum. Acredita em mim. Não sou mais do que uma cauda, um pequeno pedaço de cauda infeliz e perdida. O dragão-cabeça venceu-me e devorou-me! Vê lá o que resta de mim! E como eu gostaria de continuar a viver...
   Wan-Bo respirou, mais descontraído. Esta criatura merecia-lhe alguma consideração.
   - Falas verdade? Combateste o dragão-cabeça? És muito corajosa! Mas agora estás a perturbar-me. Vai-te embora, por favor!
   A cauda agitou-se freneticamente no nariz de Wan-Bo.
   - Ouve-me, ouve-me, grande Wan-Bo - suplicou, torcendo-se desesperada. - Tive agora uma ideia assombrosa! Ainda não estás habituado à minha presença, mas posso ajudar-te de muitas maneiras e...
   - Nem penses nisso! Já te disse que me incomodas... Vamos lá, ou sais a bem ou esmago-te contra o tronco deste imbondeiro.
   - Não, não, por favor! Ouve: serei tua escrava!
   - Escrava? Escrava?... Mas eu não preciso de ti para nada... - disse Wan-Bo, rindo-se. - Não passas de um miserável pedaço de cauda de serpente! A cauda torcia-se e retorcia-se. O seu espírito funcionava com mais lentidão desde que não tinha cabeça, pois não estava acostumada a pensar sozinha. Mas, de repente, soube o que responder e como convencer o grande elefante.
   - Repara! - exclamou. - Repara, Wan-Bo, como posso ajudar-te...
   E estendeu-se, estendeu-se até ao solo. Aí, tateou um pouco às cegas até encontrar o que procurava: um tufo de ervas bem frescas...
   A cauda enroscou-se e foi levar à boca do elefante a erva rasteira com que ele sempre sonhara. Ah, como era maravilhosa!
   - É tenrinha? É fresca? Queres mais? - perguntava a cauda, enquanto o elefante ia saboreando o apetitoso alimento.
   - Hum, hum... Mais um pouco, por favor!
   A cauda voltou a desenrolar-se uma, duas, três vezes... até que Wan-Bo, satisfeito e saciado, começou a sentir esse torpor infinitamente agradável que precede as longas digestões.
   Mas, de repente, sentiu o estômago novamente vazio. Os pequenos olhos de Wan-Bo tinham acabado de poisar numa mangueira... Oh, essas mangueiras cujos frutos doirados e sumarentos se escondiam no meio da folhagem! Há quanto tempo sonhava com eles!
   - E... e... talvez me possas ajudar a colher aqueles belos frutos doirados... - perguntou, um tanto perturbado por ter de confessar a sua insaciável gulodice.
   - Basta que mos indiques, ó meu senhor!
   Wan-Bo trotou até junto da árvore, e a cauda da serpente gigante ergueu-se no ar.
   - Sou cega, meu senhor. Orienta-me!
   - É aquele... Sim, mais à direita! Que bom! E o outro ao lado! - murmurava Wan-Bo, que nunca tinha comido nada tão saboroso em toda a sua vida.
   - E, assim, dirigida em volta do fruto apetecido, a cauda da serpente arrancava-o cuidadosamente para não o esmigalhar, e levava-o à boca de Wan-Bo. Este pensava que nunca mais teria medo de envelhecer. A sua cauda - mas seria na verdade "uma cauda"? - cuidaria dele, alimentá-lo-ia...
   Ao cair do dia, Wan-Bo e a cauda da serpente já se haviam tornado os melhores amigos do mundo. E a sua aliança ainda perdura...
   No entanto, houve um dia em que Wan-Bo esteve quase, quase, a perder... a tromba. Foi no dia em que Aroon, o leão, com uma valentíssima sapatada, cortou a extremidade da cauda! Não foi muito grave. Nem demasiado grande nem demasiado pequena, a tromba tornou-se um instrumento tão útil que todos os animais do mato passaram a invejar Wan-Bo.
   Mas um conselho vos dou: se encontrarem o elefante, não façam alusões à sua tromba. Não se divirtam a dizer-lhe que essa espécie de nariz não passa de uma simples cauda de serpente! Em primeiro lugar, porque Wan-Bo pode não gostar da brincadeira... e, depois, porque talvez a tromba ainda conserve parte do lendário rancor das serpentes...
   Nunca se sabe!



Contos Africanos, Ed. Verbo

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

OS ANIMAIS

Vamos todos aprender
A juntar os animais.
Uns são gordos e outros magros,
Iguaizinhos aos seus pais.

Um PORCO e outro porco
E uma porca de má cara
Juntaram-se a outros porcos
E fizeram uma .....(1)

Um BOI e outro boi
E uma vaca malhada
Juntaram-se a outros bois
E fizeram uma .... (2)

(...)

Um CÃO e uma cadela
Com o filho e a filha
Juntaram-se a outros cães
E fizeram uma .... (3)

Uma OVELHA e outra ovelha
Com aspeto muito estranho
Juntaram-se a um carneiro
E fizeram um .... (4)

Carlos Alberto Moniz, A Banda dos Animais
 
(1) vara  (2) manada  (3) matilha  (4) rebanho

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

DIÁRIO DE ANNE FRANK



   Quarta-feira, 23 de fevereiro de 1944

   Minha querida Kitty,

   Desde ontem que o tempo está maravilhoso, e eu arrebitei um pouco. A minha escrita, a melhor coisa que tenho, está a andar bem. Vou ao sótão quase todas as manhãs para tirar o ar viciado dos pulmões. Esta manhã, quando lá fui, Peter estava ocupado com as limpezas. Terminou rapidamente e veio ter comigo. Eu estava sentada no chão, no meu lugar preferido. Olhámos os dois para o céu azul, para o castanheiro sem folhas, reluzente com o orvalho, para as gaivotas e outros pássaros, cintilando com reflexos prateados, enquanto planavam pelo ar, e ficámos tão comovidos e extasiados que nem conseguíamos falar. Ele estava de pé, com a cabeça encostada a uma viga, e eu estava sentada. Inspirámos o ar, olhámos para fora e sentimos ambos que o encanto não devia ser quebrado com palavras. Ficámos assim durante muito tempo e,  quando ele teve de sair para ir cortar lenha, eu tive a certeza de que ele era um rapaz bom e decente. Subiu as escadas para as águas-furtadas e eu segui-o; durante os quinze minutos em que esteve a cortar lenha, também não dissemos uma palavra. E eu fiquei de pé a observá-lo, e percebi que ele estava obviamente a esforçar-se para cortar a madeira da maneira certa e para exibir a sua força. Mas olhei também pela janela aberta, deixando os meus olhos vaguear por uma grande parte de Amesterdão, sobre os telhados e até ao horizonte, uma faixa de azul tão claro que era quase invisível.
   - Enquanto isto existir - pensei -, este sol e este céu limpo, e enquanto eu puder apreciá-lo, como é que posso estar triste?
Tua, Anne