sexta-feira, 31 de julho de 2015

O COELHO BRANCO

   O coelho branco pôs os óculos. "Por onde deseja Vossa Majestade que eu comece?"
   "Começa pelo princípio", disse o Rei severamente, "e continua até ao fim; depois, para."
   São estes os versos que o Coelho Branco leu:

Parece que tu foste ter com ela
E que falaste com ele por fim
Ela disse que eu tinha uma alma bela
Mas que nadar, não era para mim.
Ele disse que eu estava para fora
E nós sabemos que disse a verdade.
Se ela teimar, que se vá embora
E que se deixe de tanta maldade.
Dei-lhe uma a ela, a ele dei duas,
Tu deste-me aquelas que a mim calharam
E voltaram todas pelas mesmas ruas
Ter às mesmas mãos que as cobiçaram.
Se ele ou eu fôssemos julgados
E condenados nalgum tribunal
Seríamos ambos logo libertados
Porque, de certeza, não agimos mal.
Eu tinha a ideia que tu tinhas sido
(Antes do ataque que ela sofreu)
O obstáculo que se tinha metido
De certa maneira entre ela e eu.
Não deixes saber que ela gostava
Muito mais delas que de todos nós.
Isso era um segredo que ela guardava
E nada faremos para lhe dar volta.
   "Esse é o testemunho mais importante que ouvimos até agora", disse o Rei, esfregando as mãos; "por isso, os jurados têm de ..."
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas,
Ambar


quinta-feira, 30 de julho de 2015

GORDO COMO UM PORQUINHO

   Era uma aborrecida e chuvosa tarde de primavera. Miguel tinha acabado há dez minutos de fazer os trabalhos para a escola e para a aula de inglês. Estava sozinho em casa e tinha-se posto à janela a ver as gotinhas leves que caíam na relva do pequeno jardim.  Ainda faltava uma hora para a mãe voltar e não sabia o que havia de fazer. Tentou contar os salpicos que batiam na vidraça, mas, passados cinco minutos, ainda se sentiu mais aborrecido do que estava antes. Suspirando, afastou-se da janela e deixou-se cair como um peso morto na cama.
   "Gostava tanto de ter um irmãozinho, ou um cão" pensou. "Se tivesse, brincava com eles e nunca mais teria aquela ideia terrível, nunca mais."
   Mas, mal acabou de dizer "nunca mais", a tal ideia terrível começou a falar.
   "Estás com fome" dizia ela. "Estás com fome e tens a barriga tão vazia como o tambor da máquina de lavar a roupa, tão fria como a superfície polar; sentes frio em todo o lado, sentes-te muito fraco, não te aguentas nas pernas, se te queres salvar só há uma coisa a fazer: levanta-te e vai à cozinha, enche a barriga, come até te fartares!"
   Miguel ainda resistiu um minuto ou dois àquela voz, chamou a si todas as suas energias para a combater, mas, depois, lento como um robot, levantou-se, saiu do quarto, atravessou o corredor, parou um instante à porta da cozinha, e, depois de ter suspirado, empurrou-a com todo o cuidado.
   Lá estava ele a um canto, esperando-o com toda a calma. Miguel olhou bem para ele antes de se aproximar: na penumbra da cozinha, tão luzidio, tão branco, tão alto, parecia mais uma inocente baleia adormecida nas profundidades do oceano do que um frigorífico. No silêncio em redor, só se ouvia a sua voz discreta:  - ZZZZZ? Bzzz Bzzz! ZZZZBZZ.

Susana Tamaro, O Cavaleiro Lua Cheia,
 Editorial Presença

terça-feira, 28 de julho de 2015

TANTO PARA APRENDER

Vejo as letras e os algarismos
nos vossos cadernos escolares,
arrumadinhos sobre a linha
ou aconchegados na quadrícula
que é uma pequena janela
aberta para as contas
poderem respirar e ver o sol.
Cada letra aprendida
cada algarismo sabido
é mais um saltinho em frente
para aprenderem a vida.
No fundo, temos a altura
daquilo que sabemos.
E ainda há tanto para aprender!

José Jorge Letria




segunda-feira, 27 de julho de 2015

ADIVINHAS

1

Já que tens entendimento
E és amigo de saber,
Uma pedra em cima de água,
Diz tu lá, se pode ser.

2

Qual é o bicho que come com o rabo?

3

Qual é a coisa, qual é ela
Que acende sem fazer lume?

4

Tenho um nome que diz tudo
Quanto há de repelente;
Sendo certo, todavia,
Que me quer bem toda a gente.

 


Soluções: 1 - Uma pedra de gelo; 2 - todos, pois nenhum tira o rabo para comer; 3 - o pirilampo; 4 - o porco

domingo, 26 de julho de 2015

A TIA LÚCIA
   É assim que recordo a tia Lúcia: eficiente e calma, ora na cozinha a ajudar ou a substituir a Emília, ora a passar a ferro cestos e cestos de roupa que a Emília lavara e a avó borrifara e enrolara, ora a compor um jarro de flores que escolhera no jardim, ora a limpar, ora a arrumar, sempre vestida de claro, figurinha gentil nem alta nem baixa, cabelo castanho escuro revolto, a escapar-se-lhe dos ganchos e travessas com que tentava domá-lo e que ao menor sopro de vento se desprendia e dispunha em moldura graciosa em torno do seu rosto miúdo, de grandes olhos negros, aveludados, e dentes muito brancos, um tanto irregulares.
   Hoje, é assim que a vejo. Naquele tempo eu não saberia descrevê-la. Só sabia que a achava muito bonita...
Patrícia Joyce, Gabriel dos Cabelos de Ouro e Outras Histórias


sábado, 25 de julho de 2015

PEQUENAS/GRANDES INSUBMISSÕES

   As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida lembro duas.
   Começava um ano letivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da Piedade. Cheguei de férias da minha terra e vi o Vítor a andar de carrossel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contanto: vinte. O Vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O Vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrossel.
   Outra grande insubmissão foi a do Maurício, também nos primeiros anos do liceu.
   Um dia o Maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o Maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar bola ao cesto.
   - Ó Maurício, faltaste à aula das nove.
   E o Maurício, sem responder, imperturbável, continua a lançar a bola ao cesto.
   Tocou para a aula das dez.
   - Ó Maurício, não vens à aula?
   O Maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
   Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O Maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
   Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O Maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
   Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

Ruy Belo, Homem de Palavra (s)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

AQUELA NUVEM

Aquela nuvem
parece um cavalo...

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
é uma barca à vela.
Não faz mal.
Queria embarcar nela.
Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma torre armada
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.
Não faz mal.
Quero ter asas
para espreitar na janela.

Vá, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas
tomar mil formas
com sabor a sal
- labirinto de sombras e de cisnes
no céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal...

José Gomes Ferreira, Palavras de Cristal
 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A MENINA DO MAR

   Sentaram-se os dois um em frente do outro e a menina contou:
   - Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida. É de nós todos o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas, sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro. Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito verdes e muito macias. Mas o costureiro dos meus vestidos é o caranguejo. E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços com ventosas como o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as barbatanas servem só para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quanto está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado.

Sophia de Mello Breyner Andresen, A Menina do Mar,
Figueirinhas

terça-feira, 21 de julho de 2015

SIMBOLINO

   Simbolino deu com um leãozito pouco mais encorpado do que um gato e que andava desorientado também à procura de qualquer coisa.
   Quando se encontraram, o moço arregalou os olhos de espanto e o bicho encolheu-se todo. Era um amor!
   Uma cabeça triangular e grossa pintalgada de manchas negras, orelhas muito espertas, olhos grandes e leitosos que tinham uma expressão ansiosa de sofrimento e uma boca rosada e húmida.
   Depois, a seguir à cabeça, um corpo amarelo-acinzentado, macio que mais parecia rolo de lã por cardar do que tronco de bicho bravo. Era pequenino - teria duas ou três semanas de nascido - mas assim mesmo irradiava já de si o prestígio lendário da espécie. Era um leão!

Henrique Galvão, Kurika

 

  

domingo, 19 de julho de 2015

BABINE O PARVO

"Um parvo houve por bem
Ir correr a Rússia a fundo
Para ver se via o mundo
E dar nas vistas também."
Pelo caminho encontrou
Duas isbas isoladas
E nem vivalma lá dentro.
Foi ver à cave e que viu?
Uns diabos mafarricos
De bigodes eriçados,
Olhos grandes esbugalhados,
A cabeça muito em bico,
Dedos compridos em garra,
Ali a jogar às cartas,
A chocalharem os dados,
A contarem o dinheiro.
Diz-lhes o Parvo, lampeiro:
"Ora Deus seja convosco!
Convosco, gente de bem!"
Isto não lhes caiu bem
Aos diabos, não gostaram
E ao Parvo se agarraram.
Desataram a bater-lhe,
Por pouco que não o esganaram;
Ficou mais morto que vivo,
Só então eles o largaram. 

Então o Parvo lá voltou
Lavado em pranto pra casa,
E grandes gritos soltava.
Logo a mãe barafustou,
A mulher o insultou
E a irmã acrescentava:

- Que grande burro és, Babine,
És mesmo um parvo chapado!
Não lhes soubestes dizer
O que era mais indicado;
Devias ter dito assim:

"Oh! Deus Nosso Senhior,
Sê maldito, ó Inimigo!"
Logo os verias pelas costas,
Nada mais queriam contigo
E era para ti, grande parvo,
O dinheiro das apostas!

- Está entendido, mulheres!
Fica assente, mulher minha,
Lukéria, minha mãezinha,
E Tchernava, minha irmã...
Hoje fui parvo, pois fui;
Não o serei amanhã!

E o Parvo foi mais além
Foi correr a Rússia a fundo
Para ver se via o mundo
E dar nas vistas também.

Pelo caminho encontrou
Quatro irmãos que iam malhando
Na eira espigas de trigo.
Diz-lhes ele, a cada qual:
"Oh! Por Deus Nosso Senhor,
Sê maldito, ó Inimigo!"
Logo ali os quatro irmãos
A bater-lhe desataram.
Ficou mais morto que vivo,
Só então eles o largaram.

O Parvo lá voltou
Banhado em pranto pra casa
E grandes gritos soltava.
Logo a mãe barafustou
A mulher o insultou,
E a irmã acrescentava:

- Que grande burro és, Babine!
És mesmo um parvo chapado!
Não lhes soubeste dizer
O que era mais indicado;
Devias ter dito assim:
"Oxalá arrecadeis
tantos centos num só dia
Que nem a custo o leveis!"

- Está entendido, mulheres,
Fica assente, mulher minha,
Lukéria, minha mãezinha,
E Tchernava, minha irmã!
Hoje fui parvo, pois fui;
Não o serei amanhã!
E o Parvo foi mais além
Percorrer a Rússia a fundo
Para ver se via o mundo
E dar nas vistas também.

Leão Tolstoi, Babine, o Parvo

quinta-feira, 16 de julho de 2015

PRIMEIRO BARCO

Passavam aves aos pares,
a água, em ondas, fugia,
e o Homem, triste, sofria,
preso nos mesmos lugares.
- Oh! Quem me dera - dizia -
ir longe, por água ou ares,
além de rios e mares!
Que lindo! Como seria?...
Nisto, passa de repente
um tronco sobre a corrente.
- Como és feliz? Onde vais?...
- Eis os instantes primeiros,
que fizeram marinheiros
os nossos primeiros pais.

A. Correia de Oliveira, Verso Aqui, Verso Acolá


quarta-feira, 15 de julho de 2015

O INVERNO

Velho, velho, velho,
Chegou o Inverno.

Vem de sobretudo,
vem de cachecol,
o chão onde passa
parece um lençol.

Esqueceu as luvas
perto do fogão:
quando as procurou,
roubara-as um cão.

Com medo do frio,
encosta-se a nós:
dai-lhe café quente
senão perde a voz.

Velho, velho, velho,
Chegou o Inverno.

Eugénio de Andrade, Aquela Nuvem e Outros 


terça-feira, 14 de julho de 2015

VIVA AS FÉRIAS!

   Acordar em férias. Em férias mesmo a sério. Abrir os olhos e, em ar de vingança, deixar o despertador tocar, tocar, até se acabar a corda, virar-me depois para o outro lado, olhar a cama vazia da Rosa, que há muito anda a tratar da vida pelo corredor, pela sua parede, pela casa, pelo mundo inteiro.
   Dizer "férias", e saborear cada sílaba, cada letra como se mastigasse devagar uma maçã, fazendo durar o mais possível o seu sabor na boca. Uma maçã bem vermelha, como a que a madrasta da Branca de Neve lhe ofereceu, esta no entanto, se possível, sem veneno e sem bichos por dentro. (...)
   Dou mais uma volta na cama. Férias é isto. A gente ter tempo para se lembrar das coisas, e até entendê-las melhor. Ontem fui à escola ver as pautas. Passámos todas, como já se esperava. Por isso é que esta manhã tem um sabor diferente. Por isso é que não fiz caso do despertador. Por isso é que nem dei pela saída do meu pai. Por isso é que dou mais uma volta na cama, ouvindo a avó Elisa meter a chave à porta e falar à minha irmã, que deve andar já a cirandar pela cozinha.
   Por isso é que digo "férias" como se trincasse, devagarinho, a melhor maçã do mundo.

Alice Vieira, Chocolate à Chuva



segunda-feira, 13 de julho de 2015

A VELHA E A BICHARADA

Era uma velha
Que tinha um gato,
Debaixo da cama o tinha;
O gato miava,
A velha dizia:
Estou só, estou só,
Estou só de uma banda só.
Era uma velha
Que tinha um cão,
Debaixo da cama o tinha;
O cão ladrava,
O gato miava,
A velha dizia:
Estou só, estou só,
Estou só de uma banda só.
Era uma velha
Que tinha um galo,
Debaixo da cama o tinha;
O galo cantava,
O cão ladrava,
O gato miava,
E a velha dizia:
Estou só, estou só,
Estou só de uma banda só.
(...)

Luísa Ducla Soares, Lengalengas

domingo, 12 de julho de 2015

O FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas,
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança 
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia


Resultado de imagem para fundo do mar

sábado, 11 de julho de 2015

SOL e MAR

   Agora eram férias, mas o Zé Migalha não estava com os pais. Nem com um, nem com outro. O pai tinha ido para o estrangeiro em viagem de negócios, as férias da mãe, desta vez, não acertavam com as suas férias da escola...
   Valeu-lhe o tio Dinis que disse assim:
   - O miúdo não vai ficar fechado dois meses num sétimo andar. Levo-o comigo.
   Iam à praia todos os dias: ele e o tio Dinis que era irmão da mãe.
   E foi o tio Dinis quem, ao vê-lo tão quieto, deitado na areia, lhe veio fazer cócegas na sola do pé.
   - Eh, seu Zé Migalha, vamos dar um mergulho?
   O pequeno encolheu as pernas e rolou meia volta no chão, mas não respondeu.
   À cara molhada das lágrimas, tinha-se colado areia, e o tio Dinis desatou a rir:
   - Olha o barbudo, com uma barba de três dias!
   Zé Migalha não percebeu quem era ali o barbudo, porque o tio é que tinha barbas, mas muito mais antigas do que três dias. Sempre om conhecera com elas!...
   Só quando o tio lhe passou a mão pela cara a sacudir a areia, é que entendeu a brincadeira. Riu-se, e pôs-se de pé, aceitando o desafio.
   Correram ambos para a água, tio e sobrinho, dispostos a deitar ao mar todas as tristezas.

Maria Isabel de Mendonça Soares, Os Bons Piratas

quinta-feira, 9 de julho de 2015

PIPISTRELO

Novidade sem tamanho,
verdadeira sensação,
atraía ao Zoológico
uma grande multidão.
Um bicho estranho chegara,
mastodonte,
dinossauro,
quem sabe, era um dragão!
O corpo de jacaré,
asas roxas de morcego,
crescendo a olhos vistos,
crescendo de fazer medo.
O tratador italiano,
de apelido Pomarola,
ao ver as asas abertas
do animal recém-chegado,
não pôde conter um grito:
"Oh, que belo pipistrelo!"
- pipistrelo quer dizer morcego
em sua língua materna.
Os que ouviram gostaram,
a história se espalhou
e para sempre ficou
Pipistrelo batizado.
Jornais e televisão tomaram conta do assunto,
espalharam aos quatro ventos,
fotografias, imagens
e notícias de alarmar:
acuado no seu canto, Pipistrelo não comia.
Não comia nem bebia.
De asas murchas e roxas,
ele também não dormia.
Vinte dias sem comer,
sem dormir e sem beber,
se assim continuasse, não tinha jeito,
ia morrer.
Todo o mundo se afligia:
"Ai, meu Deus! Quanta agonia!
Pipistrelo está morrendo
credo em cruz, ave-maria!
Não deixem ele morrer!"
Do Brasil inteiro vieram os que de bicho entendiam.
Observaram, estudaram, especularam, discutiram, analisaram.
Que fazer? Ninguém sabia.
Coça que coça a cabeça...
Até que por fim um deles, entendido em coração,
achou o nó da questão:
"Todo o mal de Pipistrelo é tristeza, é paixão."
A notícia se espalhou, rádio, jornal, televisão,
dos quatro cantos do mundo interessados no assunto
tocaram-se para o Brasil:
sábios de toda a Europa, gringos americanos e um chinês de Macau.

Zélia Gattai, Pipistrelo de Mil Cores




quarta-feira, 8 de julho de 2015

ADIVINHA QUEM

Faz nascer quem lhe apetece,
seja aqui ou no Japão,
e, se quer, logo acontece
ser Inverno quando é Verão.

Faz viagens sem partir,
regressa sem ter voltado.
Tem sempre, até a dormir,
papel e lápis ao lado.

Com tristeza ou alegria
escreve o que sente e o que vê..
Quer em prosa ou poesia
está no livro de quem lê!

Soledade Martinho Costa, Vamos Adivinhar

terça-feira, 7 de julho de 2015

ADIVINHAS

1

Eu fui feita às avessas
Às avessas quero ser;
Quantos paus há no mundo,
Quantos hei de roer.
Mastigar e deitar fora,
Que engolir não pode ser.

2

Qual é a coisa, qual é ela,
que quanto mais cheia,
menos pesa?

3

O que é que anda, anda, tanto anda
e nunca chega a casa do vizinho?

1- A serra    2 - Uma panela cheia de buracos   3 - O moinho. Muito andam as velas, mas ele não sai do mesmo lugar

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A  MAGIA DA LEITURA

   Sofia abre um livro e o livro torna-se caixinha de surpresas. Uma pomba branca, poisada a meio da página, enche-lhe os seus grandes olhos. Será uma pomba de verdade, assim impressa a cores, de asas estendidas e pronta a levantar voo?
   A ave, de cabecinha imóvel, estende o bico para diante e observa Sofia com atenção. Vai dar-lhe um beijo? Já lho deu? De repente bate as asas, levanta as patinhas cor-de-rosa de cima do papel e aí vai ela pelos ares, partindo em busca de ar livre.
   Sofia tem uma pomba livre dentro de um livro que guarda na estante, e quem o sabe? Agora ela já voa ao longe por cima de um areal, onde o bico penteia os fios de ouro  da cabeleira do Sol e com eles tece no ar um manto de luz mais radioso para alegrar o novo dia.
   Cintila o manto sobre o mar azul e cardumes de peixes de prata são atraídos à tona da água, onde ficam, encantados, a cantar. Passa a rede de uma traineira e leva-os em monte aos pescadores, que no barco em cantoria não cantam menos que os peixes.
   Depois irrompem da luz milhares de pombas brancas (é luz feita de pombas ou são pombas feitas de luz?) e as asas, em camada estendida no areal seco, palpitam como espumas de onda batida, cardume de peixes prateados ou penas a tremerem ao vento.
   Ao fim da tarde voam todas para o pombal, que se vê à beira de uma casa com gente lá dentro, a mexer, salas, quartos e corredores iluminados. E essa casa vivente é o livro aberto de Sofia, caixinha de surpresas.

Arsénio Mota, A Nuvem Cor-de-Rosa

sábado, 4 de julho de 2015

O VELHO, O RAPAZ E O BURRO

Um velho, um rapaz e um burro na estrada
Em fila indiana os três caminhavam.

Passou uma velha e pôs-se a troçar:
- O burro vai leve e sem se cansar!

O velho então p'ra não ser mais troçado,
Resolve no burro ir ele montado.

Chegou uma moça e pôs-se a dizer:
- Ai que coisa feia! Que triste é ver

O velho no burro enquanto o rapaz
Pequeno e cansado a pé vai atrás!

O velho desceu e o filho montou.
Mas logo na estrada alguém lhes gritou:

- Bem se vê que o mundo está transtornado!
O pai vai a pé e o filho montado!

O velho parou, pensou e depois
Em cima do burro montaram os dois.
Assim pela estrada seguiram os três.
Mas ouvem ralhar pela quarta vez:

- Um rapaz já grande e um velho casmurro
São carga demais no lombo de um burro!

Então o velhote seu filho fitou
E com tais palavras sério falou:
- Aprende, rapaz, a não te importar
Se a boca do mundo de ti murmurar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 2 de julho de 2015

UMA MÚSICA SÓ NOSSA

   A Ana lembrava-se bem da surpresa do pai no dia em que ela, ainda muito pequena, lhe anunciara:
   - Quero aprender a tocar violino. 
   - Violino?! - espantou-se o pai. É claro que ele esperava que, mais tarde ou mais cedo, a Ana viesse a gostar de música a ponto de a aprender. Talvez o piano fosse o seu eleito, era a esperança do pai... mas o violino?
   A Ana teimou e venceu. Aliás sem dificuldades de maior. E foi para uma escola de música combinando muito bem os horários de modo a não faltar às aulas da sua escola regular.
   Nos primeiros tempos, quase desistiu. Tudo parecia tão diferente do que imaginara, tudo muito lento, muito aborrecido, nada animado como desejara... Aos poucos, com grande teimosia para vencer os bocejos e o desejo de fazer coisas mais animadas, foi avançando.
   Todos os dias aprendia mais um bocadinho, em cada regresso às aulas fazia nova descoberta. Até que um dia... foi maravilhoso! O violino já tinha alguma coisa a dizer através das suas mãos. Trouxe para casa uma música inteira muito bem aprendida e deu um espetáculo só para os pais. Sentou-se diante de si, em duas cadeiras, um mini-auditório, um teatro em miniatura, e tocou. Os aplausos no final pareciam vir de uma multidão entusiasmada. A alegria, a amizade, o apoio valem bem uma multidão.
   Foi tudo isso que levou a Ana a continuar. E por vezes o caminho parecia tão difícil... Agora já sabe centenas de músicas, o violino canta feliz debaixo dos seus dedos, o arco passa por eles num vaivém perfeito. Algumas vezes, a Ana toca com o pai - o que é ainda mais divertido.
   Há um segredo, um segredo muito grande, um segredo da Ana que só agora se revela cá entre nós: a Ana deseja, um dia, escrever a sua própria música. A primeira que fizer, a primeira da sua autoria será dedicada aos pais. Não está só pensada, já tem título: "Uma música só nossa". Será uma música para contar muitas, muitas coisas que a Ana tem para dizer...

Alexandre Honrado, Querem Roubar o Sol