sexta-feira, 29 de abril de 2016

O CASTELO DE D. BRANCA

   Em Currelos, no concelho de Carregal do Sal, há um antigo castelo quadrangular com janelas ogivais, ao qual o povo chama Castelo de D. Branca.
   Conta a lenda que esta D. Branca se chamava, de seu nome completo, D. Branca de Vilhena. Era fidalga e vivia com seu marido no castelo das janelas ogivais até ao dia em que pariu um par de gémeos.
   Não podendo acreditar que eram ambos filhos do mesmo pai e, por outro lado, tendo consciência absoluta de não ter conhecido outro homem, D. Branca entrou em pânico. Que diria de si aquele marido tão amigo? Certamente ia escorraçá-la de casa mais os filhos, ou mandá-la expor no pelourinho para vergonha pública! Não, antes mandar matar uma das crianças e viver em paz o resto da vida!
   Mandou chamar um pajem de sua muita confiança, entregou-lhe o menino que nascera em segundo lugar e ordenou que o fizessem desaparecer para todo o sempre. E, como prova de que a sua ordem fora executada, disse ao rapaz que lhe trouxesse a língua da criança.
   O pajem lá partiu para cumprir a sua ordem, sentindo um nó na garganta e o estômago revolto com a crueldade. Seguia Mondego abaixo quando encontrou o seu senhor e decidiu contar-lhe tudo.
   O fidalgo mandou-o arrancar a língua a um cão e levá-la a D. Branca, para que descansasse. Depois pegou no menino e foi entregá-lo a um moleiro, muito em segredo, para que o criassem sem que nada lhe faltasse, trazendo-o sempre vestido como andava o irmão.
   Passou-se o tempo, e um dia, pela festa do Espírito Santo, o menino do moleiro veio à romaria. O fidalgo, D. Branca e a outra criança saíram também do seu castelo, para irem à festa. No caminho encontraram-se todos e o fidalgo, apontando a criança que o moleiro trazia em cima do burro, vestida como o seu filho, disse a D. Branca:
   - Ora aqui está um menino que se parece com o nosso! Era digno de viver com ele e de ser nosso filho!
   D. Branca empalideceu e não disse palavra. Dentro de si estalaram todas as certezas laboriosamente construídas ao longo daqueles anos de remorsos e saudades. Percebendo que o marido sabia de tudo, pegou no menino, levou-o para casa e sentou-o à mesa, onde pela primeira vez comeu com a sua família. Deitou-o depois na cama com o irmão e aconchegou-lhes a roupa.
    Era noite fechada quando D. Branca se aproximou como que distraída de uma das janelas do castelo. Só quando o fidalgo, sentado de costas para as janelas, em frente da lareira, ficou sem resposta a uma sua pergunta, se apercebeu de que D. Branca desaparecera.
   Lá em baixo brilhava ao luar o seu corpo, de costas para a vida.
   Dali por diante, todas as noites andava pela margem do Mondego o fantasma branco e brilhante de D. Branca, penando no local em que mandara afogar o seu filho. Diz-se que a acompanhava o Diabo, branco e brilhante como ela, em forma de mastim(1).

Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas,
Amigos do Livro Editores

(1) cão de guarda de grande porte.


 

sábado, 9 de abril de 2016

O CARACOL

   O caracol que desejava conhecer os motivos da lentidão também não possuía um nome (tal como os restantes caracóis) e isso causava-lhe uma grande preocupação. Parecia-lhe injusto não ter um nome, e quando algum dos caracóis mais velhos lhe perguntava porque o queria, igualmente sem erguer a voz, respondia:
   - Porque o calicanto se chama assim, calicanto, e por isso quando chove, por exemplo, dizemos que nos vamos refugiar sob as folhas do calicanto. Também o saboroso dente-de-leão se chama assim, dente-de-leão, e, por isso, quando dizemos que vamos comer umas folhas de dente-de-leão, já não comemos urtigas por engano.
   Mas os argumentos do caracol que desejava conhecer os motivos da lentidão não despertavam grande interesse nos outros caracóis. Entre eles murmuravam que as coisas estavam bem assim, que bastava saber o nome do calicanto, do dente-de-leão, do esquilo e da gralha, do prado a que chamavam País do Dente-de-Leão, e que não  precisavam de mais nada para serem felizes sendo como eram, caracóis lentos e silenciosos, decididos a conservar a humidade dos seus corpos e a engordar para suportarem o longo inverno.

Luís Sepúlveda, história de um caracol que descobriu
 a importância da lentidão, Porto Editora