sábado, 30 de dezembro de 2017

SONHO



   A avó entende que a vida não passa duma galé para quem nasceu pobre, mas ele gosta de andar na lida do campo, embora queira meter-se a serralheiro. Bem melhor do que ir à escola aprender coisas sem préstimo, acha o Constantino na sua. Por isso o tempo de férias o encontra sempre expedito para qualquer trabalho ao ar livre, sem a sujeição daquela amarra da carteira, onde já gravou, a canivete, a primeira letra do nome.
   No trato das vacas e das burras, a partir lenha ou a regar o milho para o pasto na terra que o pai traz de renda, nunca lhe ouviram uma rezinguice, a não ser quando resolve meter-se no rio e o chamam de casa para fazer um recado. Então exaspera-se, dão-lhe raivas súbitas, recalcitra, abana o corpo todo, como se tivesse pulgas no sangue.
   O rio é a sua paixão - talvez por sonhar que um dia chegará a serralheiro de barcos, como ele diz.
   Já se tornou num hábito verem Constantino deitado por ali a olhar as águas, cujo destino tão bem conhece. Por sinal, sabe mais coisas do que vem nos livros: lá só falam do rio Trancão, e para ele o Trancão só começa ao pé de Bucelas; antes disso há muitos outros rios - o da Lavandeira, o da Ponte Grande, o da Pontinha, sem falar nos açudes do Avelar e do Casalinho, onde um banho regala o corpo feio das ratas-d'água, quanto mais o de uma pessoa com fala e entendimento. A mãe já lhe tem dito vezes sem conta que um dia, sem ele esperar, lhe começarão a nascer barbatanas e ficará peixe dentro do rio.
   O rapaz delicia-se com a hipótese e pensa, radiante, que aí estava uma boa maneira de chegar mais depressa a Lisboa, onde já o levaram para ver o Tejo e os barcos... Foi um dia bem passado, olarila! Nunca mais se esqueceu...
   Ainda hoje brincam com ele, repetindo o seu deslumbramento perante o quadro das fragatas e dos navios, das gaivotas e dos ruídos.
   "Ena tanta água!", gritara entusiasmado e tonto. "Donde vem esta água toda?" E ali mesmo lhe nasceu a vocação para serralheiro de navios, entre as maravilhas dessa manhã soalheira.
   Antes de ser homem - ah, sim, bem antes de lá chegar! - sonha construir um barco para fazer uma viagem. Até onde?! Não avalia bem. Nunca viu coisa mais bonita em toda a sua vida! Parece-lhe milagre que a água aguente um navio de ferro tão grande e tão cheio de gente... Também ele quer experimentar fazer um... E já tem uma ideia...





Alves RedolConstantino, Guardador de Vacas e de Sonhos


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