sábado, 25 de julho de 2015

PEQUENAS/GRANDES INSUBMISSÕES

   As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida lembro duas.
   Começava um ano letivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da Piedade. Cheguei de férias da minha terra e vi o Vítor a andar de carrossel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contanto: vinte. O Vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O Vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrossel.
   Outra grande insubmissão foi a do Maurício, também nos primeiros anos do liceu.
   Um dia o Maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o Maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar bola ao cesto.
   - Ó Maurício, faltaste à aula das nove.
   E o Maurício, sem responder, imperturbável, continua a lançar a bola ao cesto.
   Tocou para a aula das dez.
   - Ó Maurício, não vens à aula?
   O Maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
   Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O Maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
   Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O Maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
   Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

Ruy Belo, Homem de Palavra (s)

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